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Crédito, AIZAR RALDES/AFP via Getty Images
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- Author, Vitor Tavares
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
O fim de uma era política da América Latina caminha para acontecer neste domingo (17/8), com as eleições na Bolívia.
Há quase 20 anos no poder, o esquerdista Movimento ao Socialismo (MAS) chega às urnas enfraquecido, com possibilidades remotas de chegar ao segundo turno e completamente rachado entre os grupos políticos do ex-presidente Evo Morales e do atual mandatário, Luis Arce.
É como se tivesse acontecido uma “autodestruição”, resume o jornalista e escritor boliviano Fernando Molina, autor de livros como Las cuatro crisis. Historia económica contemporánea de Bolivia (As quatro crises. História econômica contemporânea da Bolívia).
“Essa divisão drástica entre os dois grupos foi como uma pá de terra no caixão”, diz.
De um lado, está Evo, nome mais importante da política boliviana neste século. Ele tem pedido à população para votar branco ou nulo, como um protesto por seu impedimento de concorrer a mais uma eleição, após decisão do Tribunal Superior Eleitoral.
Evo foi eleito em 2005, fazendo história como primeiro líder de origem indígena a chegar ao poder do país mais indígena da região. Foi reeleito em 2009 e em 2014, após mudanças na Constituição permitirem sua perpetuação no poder.
Do outro lado, está o presidente Luis Arce, candidato apoiado por Evo em 2020 e vencedor das eleições convocadas para aquele ano. Três anos depois, os dois romperam de vez e, desde então, se tornaram rivais que disputam a liderança do MAS.
Arce é extremamente impopular, segundo as pesquisas, diante da crise econômica pela qual passa a Bolívia – tanto que nem vai concorrer à reeleição. O seu candidato (e do MAS) é Eduardo del Castilho, ministro de Governo. Ele aparece com menos de 2% das intenções de voto na última pesquisa Ipsos/Ciesmori.
Nesse caldo da esquerda, entra ainda Andrónico Rodríguez, presidente do Senado e antigo pupilo político de Evo Morales, mas que rompeu com seu padrinho para sair como candidato independente dele.
Andrónico é o esquerdista mais bem colocado nas pesquisas, mas com apenas cerca de 5% dos votos, segundo a última pesquisa Ipsos/Ciesmori, ou 7%, segundo levantamento da Captura Consulting.
Diante dessa fratura, a Bolívia pode ter dois candidatos da direita no segundo turno. E os mais bem colocados nas pesquisas são dois velhos conhecidos dos bolivianos.
Crédito, AIZAR RALDES/AFP via Getty Images)
Samuel Doria Medina é um empresário famoso por empreendimentos como o edifício mais alto do país e por ter lojas de fast food como Burger King. Ele já disputou as eleições de 2005, 2009 e 2014.
Empatado com ele nas pesquisas está Jorge “Tuto” Quiroga, ex-presidente da Bolívia entre 2001 e 2002.
No país, os institutos não podem divulgar pesquisas na última semana da campanha eleitoral – e os levantamentos têm um histórico de não acertar com precisão o resultado das urnas.
Além disso, o último levantamento Ipsos/Ciesmori mostra ainda 13% de indecisos, além de 20% de intenção de voto branco ou nulo.
Esse segmento da população pode ainda “desempenhar um papel decisivo no resultado final, dependendo de como suas preferências se definirem em última instância”, explica à BBC News Brasil Luis Garay, diretor de serviços ao cliente do Ipsos/Ciesmori.
Mas, se o cenário que favorece a direita se confirmar, a Bolívia colocará fim ao ciclo bem-sucedido do movimento liderado por Evo Morales e que causou transformações profundas em um dos países mais pobres da América do Sul.
Na década de 2010, o país cresceu em média a 5% ao ano, impulsionado pelos ganhos com a exportação de gás natural, especialmente ao Brasil e à Argentina.
Mas esses anos de bonança acabaram, e a memória deles não parece ser mais suficiente para os eleitores de 2025.
A derrocada do MAS
O MAS é um partido nacionalista que sempre defendeu a estatização e a nacionalização dos recursos naturais dentro da Bolívia, retendo sobretudo a renda do gás e extrações dos minerais
Esse movimento durante o boom das commodities fez com que o governo boliviano pudesse investir ao longo dos anos em projetos de infraestrutura, em distribuição de renda e subsídios à população.
Durante os anos de Evo no poder (2006-2019), o país ficou marcado por seu constante ritmo de crescimento, estabilidade e capacidade de conter a inflação. Alguns até chamaram isso de “o milagre econômico boliviano”.
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Arce era o ministro de Finanças e, portanto, escolhido por Evo para seguir seu projeto.
Mas esse modelo mostrou suas falhas especialmente a partir de março de 2023, quando ficou evidente uma grave escassez de dólares nas reservas do país e começaram a surgir longas filas nas ruas de cidadãos tentando obter a moeda estrangeira. Isso abriu espaço para um mercado paralelo.
“Toda a aposta estava nas reservas de gás, que, ao mesmo tempo, não foram cuidadas. Não se investiu o suficiente para que o gás continuasse alimentando o modelo do MAS. Então, foi uma crise enorme para a esquerda, porque dá, digamos, razão àqueles que a criticaram durante décadas”, diz o escritor e jornalista Fernando Molina.
Além de um esgotamento das reservas, a Bolívia viu seus dois principais compradores, Brasil e Argentina, adotarem novas estratégias para abastecimento de gás.
As remessas bolivianas chegaram a representar, nos anos 2000, cerca de 50% do gás natural consumido no Brasil – hoje, é cerca de 20%. O recorde da exportação do país aconteceu em 2014. De lá para cá, o fluxo caiu, e a balança comercial da Bolívia passou a ser bastante deficitária – o que levou à escassez de dólares.
As exportações de hidrocarbonetos como um todo despencaram de US$ 6,6 bilhões em 2014 para US$ 2 bilhões em 2023.
No caso do Brasil, o país passou a tirar gás do pré-sal e passou a importar GNL por via marítima, com a construção de terminais de regaseificação em portos.
Já a Argentina vem investindo na produção de gás de xisto da reserva de Vaca Muerta, na Patagônia, levado para o resto do país por meio de um gasoduto.
Para a cientista política boliviana Moira Zuazo, diante do conhecimento na queda da produção e exportação de gás, o MAS não promoveu um debate interno para contornar o problema de dependência do recurso natural.
“Já se sabia, desde 2010 ou 2011, que o gás estava se esgotando, que o subsídio aos preços dos hidrocarbonetos não era apenas insustentável, mas que acabaria sendo extinto. Isso já era sabido, mas não houve um debate”, conta a pesquisadora associada da Universidade Livre de Berlim.
“Hoje, já não é apenas uma questão da falta de recursos para redistribuir. Instalou-se um panorama de absoluta incerteza econômica, e as pessoas estão olhando para uma ausência de perspectiva, de futuro”, completa Zuazo.
Todo esse cenário levou instabilidade econômica – e política – à Bolívia nos últimos anos.
Tentando manter seu programa social e econômico, o governo de Luis Arce passou a utilizar as reservas oficiais de dólar, que saíram de US$ 15 bilhões em 2015 para US$ 1,9 bilhão no fim de 2024.
Do lado político, a cisão do MAS ficou evidente em setembro de 2023, quando Evo Morales anunciou sua candidatura presidencial para as eleições de 2025, desafiando abertamente Arce, que esperava buscar a reeleição.
“No momento em que Evo Morales já não é capaz de aglutinar todos — porque, pela história e pelos mecanismos democráticos, tem que ceder espaço para Arce — formam-se dois partidos quase imediatamente: o de Arce e o de Evo”, explica Fernando Molina.
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Os dois se afastaram inclusive ideologicamente, especialmente sobre o futuro das reservas de lítio do país, uma das maiores do mundo.
Evo Morales defende a nacionalização das reservas e controle estrito do Estado sobre a extração do mineral essencial para a fabricação de baterias.
Já Arce vem promovendo um modelo de industrialização vinculada ao Estado, mas com abertura a parcerias estratégicas internacionais com tecnologia estrangeira, como russa e chinesa.
Para Molina, soma-se a isso um histórico de uma política muito personalista na Bolívia. Ou seja, antes mesmo de serem seguidores de uma instituição, um partido, uma ideia, os militantes seguem uma pessoa. No caso, especialmente Evo.
“O MAS não debateu o grande tema da sucessão. E isso implodiu o MAS”, concorda a cientista política Moira Zuazo.
Evo Morales, por exemplo, tem preferido que as pessoas votem branco do que apoiar Andrónico Rodríguez, o que fez a candidatura esquerdista derreter.
“Se não houver uma bancada do MAS, ou seja, de Andrónico, na Assembleia, os inimigos de Morales vão poder fazer o que quiserem. Então, por que ele faz isso? Por seu personalismo, seu culto à personalidade”, completa Molina.
Mas, para o escritor e jornalista, além da ruptura interna do MAS, é preciso considerar também o movimento global de crescimento da direita.
Ecos da direita do Brasil e da Argentina
Os dois candidatos mais bem colocados nas pesquisas na Bolívia, Jorge ‘Tuto’ Quiroga e Samuel Doria Medina, são considerados parte de uma direita ou centro-direita tradicional no país.
Portanto, não são outsiders ou políticos de direita radical de ascensão rápida, algo visto, por exemplo, com a eleição de Javier Milei na Argentina e, em certa medida, de Jair Bolsonaro no Brasil.
Ainda assim, o movimento global de direita, hoje encabeçada por Donald Trump nos EUA, também está presente nessas eleições bolivianas, diz Fernando Molina.
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Ele conta que na região de Santa Cruz de La Sierra, centro econômico do país, polo do agronegócio e perto da fronteira com o Brasil, há uma influência da direita brasileira.
“Há quem se diga bolsonarista no lado oriental do país, com influência em alguns partidos”, diz Molina.
A eleição de Milei na Argentina e seu controle bem-sucedido da inflação tem sido usado como um trunfo direitista também na campanha boliviana.
“Tudo isso devolveu certa confiança aos setores mais conservadores”, comenta Molina
“Mas há também essas casualidades históricas que acontecem simultaneamente. Porque, junto ao giro à direita, vem um cansaço da Bolívia de um governo de 20 anos.”
Apesar da influência dos movimentos globais de direita, os candidatos desse campo político da Bolívia estão mais longe, em tese, do extremismo do que Bolsonaro ou Milei.
Para Moira Zuazo, isso se explica, em parte, porque as transformações e os avanços dos anos de bonança de Evo na Bolívia foram tão fortes que não há “marcha atrás”.
“O que foi alcançado em termos de inclusão com a nova Constituição, com a inclusão, não tem volta”, diz a pesquisadora.
Fernando Molina também argumenta que a elite boliviana se diferencia da brasileira ou argentina.
“É uma elite mais oligárquica, menos conectada aos fluxos internacionais, menos cosmopolita. Nossa economia é mais voltada para dentro, que não aprendeu em nenhum momento ideias do libertarismo. Então, é uma elite conservadora tradicional”, diz
“Também é uma elite que depende muito do Estado para suas riquezas, se comparadas com outros países. Então uma elite antiestatalista seria contra seus próprios interesses.”
Na régua ideológica, o candidato Tuto Quiroga está mais à direita, segundo analistas. Ele representa os partidos tradicionais de direita, ligado a líderes militares que governaram o país.
Quiroga assumiu a Presidência em 2001, quando o então presidente Hugo Banzer renunciou por problemas de saúde. Banzer havia sido ditador nos anos 1970 e eleito democraticamente em 1997.
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A outra vertente da direita é representada por Samuel Doria Medina, ex-ministro nos anos 1990 e visto mais perto do centro por seu histórico como social-democrata. Ele é membro da Internacional Socialista na Bolívia, organização que reúne partidos trabalhistas e social-democratas – no Brasil, o PDT de Ciro Gomes é ligado à organização.
Mas, numa guinada mais à direita do que sua origem, Doria Medina tem o apoio direto de Luiz Camacho, ex-governador de Santa Cruz, que foi preso acusado de ser um dos líderes do golpe contra Evo Morales em 2019. Ele é considerado um fator radicalizador da candidatura de Doria Medina, explica Molina.
O candidato também recebeu apoio do empresário Marcelo Claure, que se tornou um dos centros da conversa nessas eleições por sua tentativa de mobilizar o debate eleitoral numa campanha contra o MAS.
Medina é considerado a pessoa mais rica da Bolívia, apesar de ter feito sua fortuna nos Estados Unidos. Claure é vice-presidente executivo global da varejista chinesa Shein e proprietário do Club Bolívar, um dos times de futebol mais populares do país.
E o futuro de Evo?
Enquanto pede voto nulo no domingo, Evo segue refugiado na região cocaleira do Chapare, protegido por seus apoiadores.
O ex-presidente é alvo de um mandado de prisão numa investigação que o acusa de abusar de uma menor de idade, com quem teria tido um filho em 2016. Ele diz que se trata de perseguição.
A cientista política Moira Zuazo afirma que a situação do Chapare precisará ser debatida regionalmente na América Latina após as eleições.
“Neste momento, você vê um Estado com um enorme vazio que é o Chapare, onde ninguém faz campanha, de onde a polícia saiu”, conta.
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Para Fernando Molina, a situação de Evo espelha outros momentos da turbulenta história polícia boliviana.
“Sempre que um caudilho de grande importância se eclipsa, acontecem as coisas que estão acontecendo agora, com muita fragmentação e incerteza”, diz.
Mas teria Evo Morales, um político hoje rejeitado pela maioria dos bolivianos segundo as pesquisas, a força para voltar ao centro do debate político?
Para Zuazo, é muito cedo para dizer que Evo e o MAS viraram “história”. A pesquisadora avalia que a atual queda pode ser uma oportunidade de o movimento se reconstruir de forma mais democrática e plural.
Já para Molina, a crise econômica boliviana será difícil de se resolver pelo novo governo – e isso poderá abrir espaço novamente a Evo.
“Se for muito difícil solucionar a crise, haverá muito mal-estar, muito empobrecimento, muita perda de direitos. Enfim, Evo Morales pode canalizar isso, e já está se preparando para isso”, diz.