A PEC da Blindagem, aprovada com rapidez pela Câmara dos Deputados na última quarta-feira (17), pode ampliar a infiltração do crime organizado na política brasileira, favorecendo a criação de um narcoestado no Brasil.
A análise é de especialistas e estudiosos do tema ouvidos pela reportagem. Eles apontam para casos concretos de corrupção envolvendo políticos e organizações criminosas, sejam milícias ou aquelas ligadas ao tráfico de drogas, e sugerem que a medida de proteção parlamentar tem potencial para abrigar malfeitos realizados sob a influência do crime organizado.
Um dos casos citados é o do presidente do União Brasil, Antônio Rueda, apontado por um piloto como suposto dono de aviões operados pelo PCC (Primeiro Comando da Capital) em uma reportagem publicada pelo ICL (Instituto Conhecimento Liberta) e pelo UOL. Rueda nega a acusação.
“A PEC da Blindagem contribui para aumentar a chance de infiltração criminosa no Congresso por meio de maus parlamentares”, avalia o advogado Walfrido Warde, presidente do Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa (IREE).
“Isso porque, como sua alcunha diz, a PEC garante um salvo-conduto para usar o orçamento para fins eleitorais. E, no contexto de um financiamento de campanhas que vem se criminalizando, como vem sendo noticiado, o orçamento do país fica sujeito ao sabor dos interesses do crime organizado. Esse é o perigo”, diz ele.
“Com isso, o risco é nos transformarmos em um narcoestado, aquele que se rendeu às finalidades do crime organizado e que, portanto, está sob o controle da máfia.”
Warde representa o PSOL na ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) 7697, que questiona junto ao STF a constitucionalidade e a falta de transparência das emendas parlamentares. Ela foi distribuída ao ministro Flávio Dino, que tem acelerado processos sobre emendas parlamentares que tramitam no tribunal depois da aprovação da PEC da Blindagem.
Isso porque a PEC permite ao Congresso barrar prisões e processos criminais no STF (Supremo Tribunal Federal) contra deputados e senadores e prisões.
O texto, que recebeu apoio maciço dos partidos do centrão, do PL de Jair Bolsonaro, e também de uma minoria entre os deputados do PT, segue agora para o Senado, onde precisa ser aprovado em dois turnos para ser promulgado e entrar em vigor, sem possibilidade de sanção ou veto presidencial.
Para Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP (Universidade de São Paulo), há muitos exemplos de infiltrações do crime organizado na política e em empresas que prestam serviços aos poder público.
“A ideologia do crime organizado é ganhar a política e se apropriar do Estado não para imprimir nele algum tipo de projeto coletivo, mas para desregulamentar tudo de modo que possa ganhar dinheiro sem grandes ameaças. É um projeto extrativista, uma ideologia que se diz liberal mas que quer acabar com o Estado para garantir seus ganhos sem fiscalização”, diz o autor do livro “República das Milícias” (Todavia) e coautor de “A Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil” (Todavia).
De acordo com Paes Manso, a PEC da Blindagem complementa um cenário de tempestade perfeita em que o aumento do capital do PCC, promovido pela internacionalização de seus negócios, ocorreu em um contexto de proibição do financiamento de campanhas por empresas privadas e consequente escassez de recursos para candidatos ao mesmo tempo em que proliferaram fintechs, casas de apostas e novas ferramentas de lavagem de dinheiro.
Completa o quadro o surgimento das emendas parlamentares durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), que se tornam “uma caixa preta do serviço público”, aumentando as oportunidades de corrupção. As emendas seguem em vigor no governo Lula (PT).
A jornalista Cecília Olliveira, diretora da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e autora do livro “Como Nasce um Miliciano” (Bazar do Tempo), afirma que, ao criar mecanismos que aumentam a proteção legal dos parlamentares, limitam a atuação da Justiça contra eles e elevam os critérios para responsabilização, a PEC diminui os riscos de aliados da milícia ou de traficantes.
“Na CPI das Milícias, há quase duas décadas, foram citados mais de 200 nomes, alguns dos quais estão na política até hoje. Então, ao invés de trabalhar para que criminosos não entrem na politica, estamos tornando possível uma rota de fuga para eles. Entrar para a política será mais um mecanismo de defesa”, diz ela, que é cofundadora do Intercept Brasil e diretora-fundadora do Instituto Fogo Cruzado.
Oliveira cita o caso recente da prisão de deputado estadual fluminense TH Jóias numa investigação sobre tráfico de armas, drogas e animais silvestres. Ele era filiado ao MDB. “Trata-se de um parlamentar com laços diretos com o Comando Vermelho. E se essa prisão não puder mais acontecer de fora para dentro da Câmara, e só puder ser autorizada por pares, que podem, também, ter algum envolvimento com o crime?”, questiona. “É importante levar isso em consideração porque pode haver um efeito cascata da PEC da Blindagem.”