Após elaborar três pareceres em cinco dias, o relator do projeto Antifacção, o secretário licenciado de Segurança Pública do estado de São Paulo, deputado Guilherme Derrite (PP-SP), recuou nessa terça-feira e excluiu do texto alterações na Lei Antirrerorismo. Com forte oposição do governo e de especialistas na área, o parlamentar anunciou que retiraria trecho que abria brecha para a equiparação entre facções e grupos terroristas. Ao lado do presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), Derrite também afirmou que iria manter as prerrogativas da Polícia Federal (PF), cuja atuação contra grupos criminosos aparecia em redação anterior condicionada à comunicação a gestores estaduais.
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Com a nova versão do projeto publicada na noite dessa terça, governistas comemoraram a modulação, mas ainda analisavam outros trechos do texto, rebatizado pelo aliado do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), de “Marco Legal do Combate ao Crime Organizado”.
A intenção de Motta é levar o projeto ainda nesta quarta-feira ao plenário, ou no máximo na quinta. Segundo o deputado, o esforço buscará “a convergência” entre governo e oposição. Na terça, o presidente da Câmara passou o dia em reuniões e ouviu do ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, que a penúltima versão de Derrite estava recheada de “inconstitucionalidades”. Mais cedo, ele havia sinalizado que recorreria ao Supremo Tribunal Federal (STF).
- Sem equiparação com terrorismo – Derrite, que havia criado artigos na Lei Antiterrorismo para enquadrar ações de tráfico e milícia nas mesmas penas, retirou ontem esse ponto do texto, após o governo Lula e especialistas em segurança alegarem risco de sanções internacionais, o que afastaria investimentos e ameaçaria a soberania nacional.
- Prerrogativas da PF – O primeiro relatório de Derrite afirmava que a investigação de crimes ligados a organização criminosa caberia às polícias civis e que a PF atuaria “mediante provocação do governador”. Após críticas, ele estabeleceu que a PF poderia atuar por iniciativa própria, “através de comunicação às autoridades estaduais competentes”. Ontem, após retirar a inclusão das facções na Lei Antiterrorismo, Derrite considerou “desnecessária qualquer disposição expressa sobre a competência” das polícias.
- Perdimento de bens – O novo parecer institui a ação civil autônoma de perdimento de bens, que extingue os direitos de posse e propriedade e de todos os demais direitos sobre bens que sejam produto ou proveito de atividade ilícita ou com a qual estejam relacionados, e a sua transferência em favor da União, dos Estados, do Distrito Federal ou Municípios, sem direito a indenização.
- Agravamento das penas – O texto propõe pena de 20 a 40 anos, correspondente à aplicada ao feminicídio, adotada como referência para delitos que atentam contra o Estado e a segurança coletiva. Um líder de uma organização criminosa, por exemplo, pode chegar a pegar mais de 65 anos de prisão.
- Auxílio-reclusão vedado – O texto de Derrite também prevê a proibição do auxílio-reclusão para dependentes de quem estiver cumprindo pena privativa de liberdade em regime fechado ou semiaberto por algum dos crimes previstos na proposta.
- Bancos de organizações criminosas – A proposta institui o Banco Nacional de Organizações Criminosas, Paramilitares ou Milícias Privadas, que tem por finalidade manter uma base unificada de dados sobre pessoas físicas e jurídicas integrantes, colaboradoras, ou financiadoras de organizações criminosas, grupos paramilitares ou milícias privadas.
- Progressão de regime – O texto prevê que a progressão de regime seria dificultada, chegando a exigir cumprimento de até 85% da pena, se o apenado for reincidente em crime hediondo, ou equiparado, com resultado morte, ficando vedado o livramento condicional.
Governistas consideraram o desfecho uma vitória. Derrite, por sua vez, evitou admitir um recuo em coletiva à imprensa:
— O que você chama de recuo eu chamo de estratégia. Eu atendo ao interesse do povo brasileiro.
As últimas alterações buscam reduzir resistências. A equiparação de penas entre as condutas praticadas por facções e terroristas provocou fortes críticas. Segundo o governo e especialistas em segurança, a medida poderia abrir caminho para que empresas e cidadãos brasileiros fossem alvos de sanções internacionais.
Outro ponto crítico se referia a um eventual conflito de competência entre a PF e autoridades estaduais.
Na primeira redação de Derrite, havia a menção ao pedido de autorização a governadores em caso de ações da PF contra grupos criminosos. Na segunda versão do texto, a atuação da PF contra o crime organizado ficava condicionada a uma “comunicação” prévia aos Estados ou a um pedido da Polícia Civil.
“Importante o recuo do relator deputado Guilherme Derrite no novo parecer que apresentou ao projeto de lei Antifacção Criminosa enviado pelo presidente Lula ao Congresso Nacional. Retirou as propostas que enfraqueciam a ação da Polícia Federal contra o crime organizado e as que ameaçavam a soberania nacional. Também relevante o relator ter mantido propostas centrais do projeto do governo”, escreveu a ministra de Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, nas redes.
Motta também celebrou o entendimento.
— A discussão sobre soberania, a discussão sobre o papel da Polícia Federal, na hora que não se discute essas mudanças na lei antiterrorismo, tudo isso está respondido. Estamos agora criando uma lei nova, o Marco Legal do Enfrentamento ao Crime Organizado — disse o presidente da Câmara. — Temos que ter a capacidade de construir e buscar convergência, principalmente para os grandes temas. A segurança pública nunca foi um tema tão urgente. Temos conversado para a proposta conversar com o sentimento do país.
O Ministério da Justiça fará agora uma análise mais apurada do texto para orientar os posicionamentos do governo. Em meio às críticas de integrantes da PF e do governo Lula, Motta ressaltou que conversou por duas vezes nos últimos dois dias com o diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, e almoçou na terça com Lewandowski.
O relator classificou como “equivocada” a interpretação de que a autonomia da PF era cerceada em versões anteriores, mas reconheceu a necessidade de alteração.
— Se o problema está no conflito de competência da PF e na soberania nacional, a gente está discutindo. Vamos manter um texto duro, disso não abro mão — afirmou Derrite. — Vamos entregar um marco legal do combate ao crime organizado no Brasil.
Já o líder do PL, Sóstenes Cavalcante (RJ), avisou que o seu partido ainda buscaria equiparar as facções a grupos terroristas em outra iniciativa que tramita na Câmara.
— Se o relator Derrite quer tirar o terrorismo do projeto, nós do PL temos interesse no projeto antiterrorismo. Não abriremos mão de colocar os criminosos no Brasil como terroristas — disse Sóstenes à CNN Brasil.
Para quebrar resistências na oposição, Derrite afirmou que integrantes de facção seriam considerados, a partir da legislação, mais perigosos do que terroristas.
— O crime de terrorismo fixa pena de 12 a 30 anos de prisão. Agora, com o substitutivo, será de 20 a 40 anos de pena (para integrantes de facção). Comas condutas típicas, pode cumprir até 85% em regime fechado para líderes de facções.
Derrite também tem intensificado articulações com o Senado para preparar o terreno após o avanço na Câmara. O presidente da Casa, Davi Alcolumbre (União-AP), designou informalmente o senador Alessandro Vieira (MDB-SE) como um dos principais canais de diálogo sobre o texto.
Vieira, que também é relator da CPI do Crime Organizado, tem conversado sobre ajustes pontuais com o relator e tenta aparar arestas que possam dificultar a tramitação na Casa ao lado.
No fim de semana, Alcolumbre procurou Vieira para ouvir sua avaliação sobre o projeto e também conversou com o senador Fabiano Contarato (PT-ES), presidente da CPI do Crime Organizado, sobre o impacto o relatório da Câmara.
Mesmo durante sua participação na Conferência do Clima (COP), Alcolumbre recebeu diversas ligações de políticos e autoridades de segurança pública interessados em discutir os rumos da proposta.
Além de Vieira, o deputado também tem mantido conversas com o senador Sergio Moro (União-PR).
Antes do ajuste de Derrite, o governo Lula reagiu elevando o tom e recorreu nessa terça-feira às redes sociais para chamar a iniciativa de “PL Anti-Investigação”, em um vídeo que criticava as mudanças no texto original do governo. A peça ressaltava a necessidade de preservar a independência da PF.
Parte do governo ainda se mantinha insatisfeita com o processo considerado “caótico” de negociação e a celeridade com que o debate foi feito no Congresso.
— Um projeto muito discutido (no Ministério da Justiça), muito trabalhoso, e de repente nós fomos surpreendidos com um relatório que foi feito em 24 horas. Em 48 horas, foi feito outro relatório. Com outras 24 horas será apresentado no terceiro relatório — afirmou Lewandowski, em um evento do Ministério Público em Brasília, antes de ler a terceira versão de Derrite.




