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Crédito, Getty Images
Nem Sofia e nem Daniel falavam uma palavra em russo. Ambos eram argentinos. Por isso, a pessoa que os recebeu com dois buquês de flores assim que eles desceram do avião, os cumprimentou com um “buenas noches” (boa noite, em português), em espanhol com sotaque eslavo.
Nenhuma das crianças sabia quem era aquele homem, que chegou a abraçar sua mãe, enquanto essa chorava, e seu pai, que sorria.
As crianças haviam nascido no Hospital Italiano de Buenos Aires, em meados da década passada, e passaram seus primeiros anos na capital argentina até que toda a família se mudou para a Eslovênia.
Na capital do país, Liubliana, em uma noite de dezembro de 2022, homens armados invadiram a casa onde eles viviam. Os pais foram presos e, por mais de um ano, as crianças ficaram sob os cuidados do serviço social.
Elas não sabiam o motivo daquela prisão até aquele voo para Moscou. A milhares de metros do chão, descobriram que seus pais eram espiões. Daniel riu. Sofia caiu no choro.
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A notícia circulou mundialmente em janeiro de 2023, enquanto ambos eram processados pela justiça eslovena.
Um dos que teve acesso à informação foi o jornalista argentino Hugo Alconada Mon, que imediatamente entrou em contato com o serviço de inteligência da Eslovênia, a polícia, o Ministério Público e o tribunal responsável pelo caso.
Não lhe contaram muito por causa do segredo de justiça, mas, ainda assim, a janela para o mundo secreto dos espiões estava aberta.
“É como quando você levanta uma pedra no jardim e tem a oportunidade de tirar uma foto das minhocas e dos tatuzinhos antes que eles voltem a se esconder sob a terra”, conta ele de sua casa em Buenos Aires.
A informação foi publicada pelo jornalista no jornal La Nación, e agora Alconada Mon publicou um livro chamado Topos. La historia real de los espías rusos que tomaron Buenos Aires como su base de operaciones (na tradução livre para o português, Agentes infiltrados. A história real dos espiões russos que fizeram de Buenos Aires sua base de operações).
A BBC Mundo — serviço em espanhol da BBC — conversou com ele sobre o que esses espiões fizeram na Argentina e como construíram o disfarce que lhes permitiu entrar na Eslovênia, um país da União Europeia e membro da Otan.
Os ‘ilegais’
A primeira distinção que Alconada Mon faz em cada entrevista que dá sobre Ludwing e María (Artem e Anna) é que eram agentes ilegais, ou seja, não foram espiões que entraram na Argentina com sua verdadeira identidade e nem estavam registrados como diplomatas da embaixada ou do consulado russo.
Pelo contrário. O jornalista contou ao menos quatro identidade diferentes de cada um.
Embora tivessem feito algumas viagens para o país sul-americano entre 2009 e 2012, nesse último ano chegaram para ficar.
“Naquele momento, ele diz que se chama Ludwig Gisch, que nasceu na Namíbia, de pai austríaco e de mãe argentina, chamada Elga Tatschke. Ele tem um atestado de óbito de Elga assinado em Viena, em 2010, e sua certidão de nascimento na Argentina do ano de 1942. Por ser filho de argentina, ele pede a nacionalidade”, conta o jornalista.
Mas tudo isso era mentira, ou quase. O certificado de óbito austríaco era verdadeiro, mas a pessoa a que ele faz referência é um homem, não uma mulher. O nome Elga Tatscke foi adulterado.
Em contrapartida, a certidão de nascimento dessa mulher argentina é real, o problema é que ela morreu aos quatro anos e está enterrada no cemitério alemão de Chacarita.
Crédito, Cedido por Hugo Alconada Mon
Quando chegaram a Moscou, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, foi o primeiro a revelar que os filhos dos “agentes clandestinos” não tinham nem ideia de quem era Putin, para exemplificar “os sacrifícios que eles (os agentes) tinham que fazer para levar adiante seu trabalho e cumprir sua missão”.
Em seu discurso de boas-vindas, Putin agradeceu “a lealdade ao seus juramentos, ao seus deveres e à sua pátria, que não os esqueceu nem por um minuto sequer.”
Shaun Walker, o jornalista do jornal britânico The Guardian, que noticiou a detenção dos Dultsev na Eslovênia, escreveu que “desde a invasão da Ucrânia, os países ocidentais expulsaram centenas de espiões ‘legais’ que trabalhavam em embaixadas por toda a Europa sob cobertura diplomática”.
“Isso deve ter forçado Moscou a depender mais dos ilegais, assim como de outras redes informais”, concluiu.
O disfarce
Na Argentina, ela disse ser María Rosa Mayer Muñoz. Afirmava ter nascido na Grécia e sido criada no México, em Querétaro. Tudo isso é falso, afirma Alconada Mon, tão falso quanto o romance que ela diz ter começado com Ludwig em Buenos Aires.
“Eles vieram e simularam: ‘Nos conhecemos, nos apaixonamos e decidimos casar’. E se casaram em Buenos Aires para que ela conseguisse a cidadania argentina como esposa de um argentino. Mas já tinham se casado na Rússia. Tenho até fotos do casamento real”, disse o jornalista.
Desse “segundo” casamento nasceram Sofia, em 2013, e Daniel, em 2015.
Mas todo esse segredo, as certidões de nascimento de mulheres mortas e certificados de óbito reais, mas adulterados, não eram para que eles ficassem na Argentina. O objetivo era construir um disfarce.
“O disfarce é a construção de uma mentira, que vai te abrir determinadas portas que, de outro modo, continuariam fechadas”, resume o jornalista argentino, que exemplifica:
“Imagine que você é israelense e não pode entrar no Irã. Então, você vai para a Colômbia, começa a trabalhar, estudar, se casa e tem filhos na Colômbia. Adquire uma empresa colombiana, um passaporte colombiano e vai, já como colombiano, para Teerã. E, enquanto finge ser, por exemplo, um empresário exportador de café, reporta a Tel Aviv.”
“Há dados, com nome e sobrenome, de casos que vieram à tona sobre espiões russos circulando pela Argentina, Uruguai, Chile, Peru, Colômbia, Nicarágua e México. E não se trata de um caso isolado. Há um esforço sistemático, coordenado, para desenvolver esse tipo de disfarce”, airma.
A BBC Mundo entrou em contato com o jornalista investigativo russo Andrei Soldatov, especialista nos serviços de espionagem do país, que confirmou a opinião de seu colega argentino.
“É fato que a América Latina se tornou muito importante para os espiões russos na hora de construir seus disfarces”, disse Soldatov, direto do exílio.
“Isso não significa que a região abrigue muitos espiões de forma permanente, mas ela funciona como um meio para forjar essas histórias através da aquisição de documentos — certidões de nascimento, por exemplo — importantes para os espiões ilegais, que depois são enviados para operar em outro país.
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Alconada Mon indica que um dos motivos que tornou a América Latina tão atrativa foi a perda do Canadá como destino privilegiado dos espiões russos para criar seus disfarces.
Quando os Dultsev foram detidos em Liubliana, 12 anos depois da prisão de Elena e Andrey, o secretário de Estado para Assuntos Internacionais e Segurança Nacional da Eslovênia, Vojko Volk, disse:
“Sabemos que são agentes muito importantes, sérios. Eles são como os The Americans, mas na Eslovênia.”
Antenas e pais na escola
“A ideia é criar uma mentira que te permita depois passar despercebido. Agora, pode perfeitamente acontecer que, enquanto você está construindo esse disfarce, encontre oportunidades”, diz Alconada Mon.
O livro cita vários dados que indicam que Artem Dultsev e Anna Dultseva foram muito ativos na Argentina.
Ela, por exemplo, informou a Moscou sobre três mães da escola onde estudavam seus filhos, escola que havia sido cuidadosamente selecionada.
“Uma trabalha em uma empresa de insumos petrolíferos, a outra em uma empresa de serviços para o setor de petróleo, e a terceira em uma companhia de gás. O elemento em comum entre as três: Vaca Muerta”.
“E quando foram para a Eslovênia fizeram o mesmo: selecionaram o colégio, identificaram os pais e mandaram relatórios a Moscou sobre um pai da escola que era diretor da agência energética mais importante da União Europeia”, acrescentou Alconada Mon.
Crédito, Cedido por Hugo Alconada Mon
Uma das descobertas do jornalista sobre os Dultsev seu deu após visitar dezenas de vezes o bairro Belgrano, onde a família vivia e onde Ludwig trabalhava.
“Cada vez que ia ao prédio onde tinham morado, o porteiro, chamado Antônio, se negava a falar comigo. Mas, um dia, eu encontrei o porteiro substituto, Juan, que me contou tudo o que ele lembrava da família.”
Os Dultsev, segundo Juan, eram pessoas caladas, discretas, mas muito gentis. Disse que a filha do casal sempre lhe dava um doce quando o via, um torrão no Natal, e quando se mudaram para a Eslovênia, perguntaram se ele queria os móveis do apartamento.
“E a única coisa que me pediram foi se eu podia retirar a antena que havia sido colocada na laje”, contou Juan ao jornalista.
“Então, fui até o outro prédio, o escritório onde Ludwig trabalhava, que ficava a quatro quadras dali. E ele também havia pedido ao porteiro para retirar uma antena.”
Ao investigar, o jornalista não encontrou no órgão argentino — onde devem ser registradas as antenas de ondas curtas e outros tipos de transmissores — nenhum registro dos equipamentos instalados por Ludwig. Mas, o mais surpreendente, segundo ele, era o alinhamento espacial que essas antenas estavam instaladas.
“Se você seguir essa linha reta que vai do apartamento até o escritório — a rua Mendonza —, no final do trajeto está o escritório de Representação Comercial da Rússia. Fica a pergunta: seria possível que ali operasse uma rede de comunicação criptografada?”
A queda
Alconada Mon disse que existem duas hipóteses sobre o que levou os Dultsev a aparecer na mira dos serviços de inteligência eslovenos em 2022.
“A primeira seria um traidor que começou a trabalhar para os serviços ocidentais e entregou outros espiões. A segunda seria que um agente do MI6 ou da CIA estava monitorando um suspeito que se encontrou com Anna Dulsev. E aí ela, e depois o marido, acabaram sob vigilância, não por um erro deles, mas porque cruzaram o caminho de outra investigação”, explica.
Ambos foram identificados primeiro como cidadãos argentinos, embora logo tenha sido descoberta sua verdadeira identidade. Imediatamente começaram as investigações com Moscou.
Mas antes do retorno definitivo para a Rússia, em 2024, os Dultsev já haviam ido e voltado ao país com uma desculpa perfeita. Em 2018, toda a família viajou para ver a seleção argentina na Copa do Mundo.
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“Eles contaram isso já de volta a Moscou, quando deram uma entrevista à revista oficial de espionagem russa. Eles disseram que aproveitaram a oportunidade da Copa do Mundo para voltar”, disse Alconada Mon, que especula:
“É possível que, já que estavam na Rússia, se reuniram com seus chefes ou com seu handler (a pessoa a quem respondiam)? Ou que tenham recebido informações ou equipamentos com tecnologia mais avançada? São hipóteses.”
O jornalista russo Andrei Soldatov afirma que é tão difícil levar essas vidas paralelas — em que você tem que fingir o tempo todo ser outra pessoa —, que espiões ilegais “às vezes precisam voltar para reforçar seu senso de orientação”.
Durante a viagem para a Rússia, toda a família vestiu a camisa da seleção argentina para assistir ao jogo em que a Argentina perdeu por 3 a 0 para a Croácia em Nizhni Nóvgorod, cidade onde, coincidentemente, Anna Dultseva havia nascido.
“O casal não se importou nada com o resultado do jogo. Mas a filha, que é argentina, estava chorando pela derrota. Imagina o impacto disso. Porque ele pode aceitar dar a própria vida por uma pátria que não significa nada para a filha dele. Mas a pátria da filha dele não significa nada para ele”, conta Alconada Mon.
O caso da família Foley, que construiu seu disfarce no Canadá, é um exemplo claro desse dilema: em 2019, Alexander Vavilov, filho mais novo do casal de espiões, conseguiu que os tribunais canadenses lhe devolvessem sua cidadania, que havia sido revogada quando seus pais foram presos nos EUA.
“Sou quem sou. Não acho que o que você descobre sobre sua herança te defina como pessoa”, disse ao receber a notícia em Toronto, cidade onde nasceu.
“Os filhos sempre são um problema”, destaca Soldatov.
“O que se deve fazer com eles? O que se deve contar sobre a família? Em que momento os espiões podem contar aos filhos que, na verdade, são russos, para poder recrutá-los?”, pergunta o jornalista.
As perguntas não respondidas
Embora os Dultsev tenham retornado à Rússia, ainda existem aspectos dessa investigação na Argentina — tanto no âmbito judicial quanto jornalístico — que seguem abertos.
Quem foi, por exemplo, a pessoa que caminhou pelo cemitério alemão da Chacarita e escolheu o nome de Elga Tatschke de uma lápide para se tornar a mãe de Ludwig Gisch?
“E te conto algo ainda mais inquietante. Essa certidão de nascimento foi solicitada por alguém anonimamente na Argentina, meses antes dos espiões pisarem em Buenos Aires, e foi de forma presencial, não pela internet, para não deixar rastros tecnológicos”, disse Alconada Mon.
“Uma pessoa foi presencialmente à rua Uruguai, ao registro de pessoas. E foi justamente a um escritório que não tem câmeras de segurança. Conseguiu a cópia e entregou para Ludwig. Aqui temos indícios de que havia mais alguém na Argentina dando suporte logístico.”
Tampouco se sabe sobre a identidade de dois cidadãos de origem colombiana que atuaram como testemunhas de casamento de Ludwig e María, na Argentina.
A BBC Mundo perguntou a Andrei Saltov se são necessários muitos agentes para realizar esse trabalho de apoio para espiões ilegais.
“Não muitos, e alguns deles podem ser agentes recrutados para aquele trabalho específico”, respondeu.
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Após a volta dos espiões para a Rússia, Alconada Mon tem tentado contatá-los.
“Mandei e-mails, tentei entrar em contato pelo serviço de inteligência russo e falei, inclusive, com o porta-voz da embaixada russa na Argentina. Ele disse que a situação já estava esclarecida, que eles haviam sido, inclusive, condecorados. Então perguntei com quem eu poderia falar e nunca mais me responderam.”
A BBC Mundo perguntou ao jornalista argentino qual seria sua primeira pergunta caso conseguisse conversar com os Dultsev.
“Não seria uma pergunta, seriam duas palavras: escuto vocês…
Me contem tudo, depois eu vejo o que é mentira e o que não é, mas quero ouvi-los.”