O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, avalia que a PEC da Blindagem, aprovada pela Câmara para proteger deputados de ações penais, pode facilitar a infiltração do crime organizado em assembleias estaduais pelo país. Para ele, a independência e autonomia são essenciais para a atividade parlamentar, mas a prática de crimes comuns não pode ser “acobertada” pela Constituição. Em entrevista exclusiva, Lewandowski diz que vai enviar em até 15 dias ao presidente Lula um projeto que mira o combate financeiro ao crime organizado e afirma que a pasta está monitorando diferentes setores da economia onde as facções já se enraizaram.
Um estudo de pesquisadores das universidades de Chicago e de Wisconsin estima que aproximadamente 26% dos brasileiros estão submetidos às regras do crime organizado. Como reverter?
Tenho dúvidas em relação a esse índice. A criminalidade organizada preocupa os governos de modo geral. É um problema equiparado ao aquecimento global, terrorismo, migrações e guerras regionais. Os países não têm mais condições de combater essa criminalidade de modo isolado. O problema das facções é muito sério. Temos mais de 80 delas operando no sistema prisional.
O que a execução do ex-delegado Ruy Fontes, que investigou o PCC no passado, diz sobre o estado de descontrole da segurança pública?
As investigações vão revelar se a execução está ligada ao crime organizado ou a outro motivo, como a atuação à frente da Secretaria de Administração de Praia Grande (SP). Vamos aguardar o resultado. Todo crime violento é imediatamente ligado às facções, mas não é bem assim.
No ano passado, um delator do PCC foi morto a tiros ao sair do Aeroporto de Guarulhos. Três policiais foram denunciados. Como extirpar a contaminação das forças policiais pelo crime?
A PEC da Segurança Pública pode ser uma resposta, porque prevê a criação de corregedorias e ouvidorias autônomas. São instituições que não estarão subordinadas ao secretário de segurança pública, governador ou ministro.
Uma operação desmantelou a infiltração do PCC no sistema financeiro. Por que o Estado tem dificuldade para asfixiar financeiramente as organizações criminosas?
Nós nunca tivemos um olhar plural para o combate ao crime organizado. Sempre se achou que a mera ação policial seria suficiente. Hoje, é preciso atuação sofisticada, com inteligência e asfixia financeira.
Essa operação descobriu a infiltração do crime organizado no setor de combustíveis. Em quais outros setores da economia o crime entrou?
Concluímos que seria melhor lançar um olhar setorizado. O primeiro setor foi o de combustíveis. Mas também preocupam os de transporte público, construção civil, coleta de lixo e, mais recentemente, fintechs. O crime vai procurando brechas. Nossa ideia é atacar setor por setor. Um problema que surgiu é a infiltração do crime organizado no processo eleitoral, lançando candidatos para depois controlarem prefeituras.
O Ministério da Justiça já tem uma lista de candidatos com vínculo com facções?
Não. Em uma reunião com presidentes de partidos, eu disse que é importante fazer a triagem. Tem um termo americano: “Know your clients” (conheça seus clientes).
O senhor disse que enviaria um projeto para reforçar o combate financeiro ao crime organizado. Qual a proposta?
Temos uma proposta que foi erroneamente intitulada de antimáfia. É antifacção, porque nós não temos máfia no Brasil. A legislação italiana desenvolveu alguns instrumentos que estamos adaptando à realidade brasileira. Por exemplo: o congelamento de ativos financeiros de forma mais expedita. Defendemos que possamos, antes de uma condenação transitada em julgado, confiscar os bens, sejam ativos financeiros ou bens móveis e imóveis. Prevemos também um endurecimento na progressão do regime prisional para os chefes de facções e uma hipótese de infiltração de agentes de segurança nestas organizações e, eventualmente, até nas empresas que se associam ao crime.
Espero que em dez ou 15 dias já tenhamos um esboço para mandar à apreciação da Casa Civil e Presidência.
O diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, disse que “interesses desconhecidos” estariam por trás da ideia de criar a agência antimáfia. Concorda?
Não. Há uma conjunção de esforços. Precisamos valorizar o Ministério Público junto com outras forças. Mas precisamos organizar quem faz o quê. Tradicionalmente, a Polícia Civil e a Polícia Federal faziam as investigações. Há estranhamento entre PF, polícias civis e MPs sobre os limites de investigação, mas vamos encontrar um meio-termo.
O relator da PEC da Segurança Pública sugeriu uma série de alterações, como “permissão para que a Polícia Militar realize investigações preliminares”. O que achou?
Essa é uma discussão travada entre as polícias militares e civis desde que eu era juiz. O projeto não é mais do Executivo, é do Legislativo. Só entendo que não se deve misturar temas constitucionais com leis ordinárias, porque a Constituição já é super detalhista e vai ficando cada vez mais um cacho de uva gigantesco.
O relator da PEC da Segurança Pública disse que o texto é “absolutamente insuficiente”…
Tudo é insuficiente. É um texto básico. É preciso evitar a tentação de colocar na Constituição temas que seriam mais bem tratados em legislação ordinária, como a progressão de regime e instrumentos para descapitalizar o crime. Uma coisa que me preocupa muito, e eu já me manifestei contra, é a prisão em segunda instância. Isso vai contra uma cláusula pétrea da Constituição: a presunção de inocência.
Deputados aprovaram a PEC da Blindagem para se protegerem contra ações penais. É inconstitucional?
Vamos nos resguardar para nos pronunciarmos quando esse projeto for aprovado. Ainda vai passar pelo Senado, onde deve haver uma mitigação na abrangência disso. O parlamentar deve ter absoluta independência e autonomia. Agora, a prática de crimes comuns não pode ser acobertada. A não persecução penal feriria o princípio da isonomia com os demais cidadãos.
Uma das principais críticas é que a PEC da Blindagem pode estimular políticos envolvidos com facções a entrarem no Congresso para se livrarem de ações. Como vê isso?
Pode ser um problema, sobretudo porque essa chamada PEC da Blindagem vai se aplicar aos deputados estaduais e quem sabe aos vereadores. Tem um efeito cascata importante: pode haver uma infiltração do crime organizado nos Parlamentos, que é algo que muito me preocupa. A imunidade parlamentar é um bem que deve ser protegido. Agora, não é possível nem desejável que se criem mecanismos de impunidade, porque o parlamentar é um cidadão como outro qualquer. Não pode estar imune à persecução penal.
O presidente Lula indicou ser favorável a reduzir as penas dos condenados na trama golpista? Concorda?
Há limites para a anistia. Crimes contra o Estado Democrático de Direito e o sistema eleitoral não são passíveis de anistia. Mas é possível que seja discutida a redução de pena em determinados crimes.
Mesmo que a motivação seja tentar revisar um julgamento do STF?
A separação entre os Três Poderes é uma cláusula pétrea da Constituição. O Congresso não é uma Câmara revisora do Poder Judiciário. Não vou entrar no mérito das motivações do Congresso. Devem ser analisadas no contexto político.
O senhor já ocupou temporariamente a cadeira de chefe dos três Poderes. Como pacificar a relação entre eles?
Nossa estrutura institucional é muito sólida. Passou por várias crises políticas e econômicas. Mas temos resistido. Vivemos um momento de tensão, mas não nos aproximamos de um rompimento institucional. Mesmo essas questões de anistia e da chamada blindagem dos parlamentares serão compostas em um diálogo entre Poderes.