Temor dos bancos brasileiros diante da ofensiva dos Estados Unidos contra o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), o desrespeito à Lei Magnitsky é parte ínfima do universo de punições a instituições por infringir regras impostas pelos americanos. Entre 2016 — ano de criação do atual modelo da lei — e 2025, apenas uma empresa e uma pessoa pagaram multas relacionadas ao descumprimento da legislação que agora atinge Moraes, segundo levantamento do GLOBO em documentos do Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros (OFAC, na sigla em inglês), braço do Tesouro que cuida das penas.
O número é apenas 1,3% do total de 148 penalizações por desrespeito às diferentes sanções que os americanos determinaram mundo afora em cerca de dez anos. A maior parte das represálias atinge empresas ou pessoas que mantiveram relações proibidas com sancionados em frentes sem relação com o escopo da Magnitsky. É o caso da gigante Microsoft, que em 2023 pagou US$ 2,9 milhões por fornecer serviços em países como Cuba, Irã, Síria e Rússia.
Em dezembro de 2024, um “indivíduo” americano — o Tesouro não revela o nome — fez um acordo para pagar US$ 45,1 mil em multa, mesmo valor que transferiu, por meio de seis transações, a uma pessoa sancionada pela Magnitsky. As transferências “facilitaram as operações comerciais do indivíduo bloqueado nos Emirados Árabes Unidos”, afirma o documento.
Já no mês passado, o alvo de multa foi uma corretora, a Interactive Brokers LLC: US$11,8 milhões. Neste caso, contudo, a empresa descumpriu mais de uma sanção, além da Magnitsky. No que envolve diretamente a lei que atinge Moraes, os números são modestos: a corretora realizou 18 transações, de cerca de US$ 28 mil, relacionados à negociação de títulos da chinesa Xinjiang Water, “detida em 50% ou mais pela Xinjiang Production and Construction Corps (XPCC), organização paramilitar subordinada ao Partido Comunista Chinês”. O OFAC sancionou a XPCC pela “conexão com graves violações de direitos humanos contra minorias étnicas em Xinjiang”.
Exemplo de como a Magnitsky preenche parcela exígua do valor das multas do OFAC é uma punição, a maior deste ano, à GVA Capital, empresa de capital de risco baseada na Califórnia. Após violar sanções relacionadas à Rússia, a companhia precisou pagar cerca de US$ 216 milhões por causa dos negócios mantidos com o oligarca Suleiman Kerimov, figura próxima ao presidente Vladimir Putin. No ano passado, o OFAC anunciou um dos maiores acordos da História: a Binance, corretora de moedas virtuais, aceitou pagar US$ 968 milhões por realizar mais de 1,6 milhão de transações envolvendo pessoas e países alvos de múltiplas sanções. A corretora deixou de implementar programas para reportar movimentações de grupos terroristas, como Al-Qaeda e Estado Islâmico.
Uma decisão do ministro Flávio Dino, colega de Moraes no STF, levantou incertezas ao setor bancário sobre o alcance da Magnitsky. Sem citar o caso, a decisão afirmou que leis ou sentenças de outros países não têm eficácia no Brasil, a não ser que passem por validação da Justiça brasileira. As ações das principais instituições bancárias do país despencaram. A avaliação de especialistas é de que os bancos se viram numa encruzilhada entre desrespeitar a lei americana ou a brasileira.
Moraes foi alvo da lei americana no fim do mês passado. O Banco do Brasil, instituição que efetua o pagamento dos ministros da Corte, suspendeu um cartão de crédito de Moraes com bandeira americana e lhe ofereceu um brasileiro para fugir do escopo da lei acionada por Trump.
— A decisão do Banco do Brasil foi preventiva demais. O banco poderia procurar alternativas no Direito dos Estados Unidos para se proteger e provocar as instituições americanas pedindo esclarecimentos sobre a aplicação da lei — avalia o professor da FGV Direito Rio Evandro Carvalho, doutor em Direito Internacional pela USP. — Seria desejável que as instituições americanas fossem provocadas sobre o que tem que ser feito, o que pode e o que não pode.
Em nota, esta semana, o Banco do Brasil informou que “acompanha com atenção as sanções” e que atua “em plena conformidade à legislação brasileira, às normas dos mais de 20 países onde está presente e aos padrões internacionais”.
A Magnitsky foi criada para atingir pessoas físicas e jurídicas acusadas de infringir direitos humanos ou de atos graves de corrupção. Geralmente, a decisão do presidente americano se baseia em amplas investigações de organizações internacionais e do Congresso, o que não aconteceu no caso de Moraes. Desde 2016, mais de 650 pessoas foram enquadradas na Magnitsky. Entre elas, há figuras de países vizinhos do Brasil, como o ex-presidente do Paraguai Horacio Cartes.
O formato atual da lei foi estabelecido em 2016, na gestão Barack Obama, e é uma das várias ferramentas de sanções a estrangeiros em vigor naquele país. A principal pena é o bloqueio de bens que estejam nos EUA, o que inclui contas bancárias, investimentos financeiros e imóveis. Em decreto de 2017 que regulamentou a lei, Trump, no primeiro mandato, também explicitou que qualquer pessoa ou empresa sob jurisdição americana fica proibida de fornecer serviços ou recursos aos sancionados.
Embora a Magnitsky seja de 2016, os Estados Unidos vem aprimorando desde a década de 1970 a legislação para alcançar casos que dizem respeito ao país, mas que estão além de seu território.
— Eles perceberam que muitos casos de corrupção de companhias americanas ocorriam no exterior. Quando isso acontece, de acordo com o Direito Internacional, o juiz criminal não vai analisar crimes que ocorreram no exterior, porque não teria jurisdição — explica o professor de Direito Comercial na USP e visitante em Harvard, Carlos Portugal Gouvêa. — Então a extraterritorialidade mudou isso um pouco. Passou-se a poder aplicar sanções a companhias que operam no exterior com base na ideia de que elas também estão nos EUA. Desde então, a extraterritorialidade passou a ser comum no modelo de combate à corrupção e a ser adotada na ideia de combater a violação de direitos humanos.
Um passo importante, segundo Gouvêa, se deu em 1977, quando os EUA criaram a Foreign Corrupt Practices Act. A diferença de agora, aponta o professor, é o grau de peculiaridade e arbitrariedade da aplicação da lei contra Moraes (leia mais abaixo). A ofensiva foi construída pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que está nos EUA e foi indiciado junto com o pai, na semana passada, por causa da atuação para tentar livrar Jair Bolsonaro das acusações de tentar um golpe de Estado.