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“Data de longe essa amizade. Vem dos primeiros dias da nossa Independência, a qual o governo dos Estados Unidos foi o primeiro a reconhecer […] O tempo não fez senão ir aumentando, na inteligência e no coração de sucessivas gerações brasileiras, a simpatia e a admiração que os Estados Unidos da América inspiraram aos criadores da nossa nacionalidade”.
Esse discurso foi proferido em julho de 1906, por José Maria da Silva Paranhos Júnior, o patrono da diplomacia brasileira, mais conhecido como Barão do Rio Branco. O discurso foi dado durante um jantar em homenagem a Eliot Root, então secretário de Estado dos Estados Unidos, em visita ao Brasil.
Mais que isso, ele condicionou as tarifas, em parte, ao processo judicial no qual o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) é réu, num caso em que ele é acusado de liderar uma tentativa de golpe de Estado. Ele nega seu envolvimento no caso.
“Este julgamento não deveria estar acontecendo. É uma caça às bruxas que deveria acabar IMEDIATAMENTE”, diz um trecho da carta divulgada por Trump como anúncio das tarifas.
Imediatamente, porém, soaram os sinais de alerta do Palácio do Planalto. Integrantes do governo interpretaram o episódio como um ataque frontal à soberania do país e, em alguma medida, como uma tentativa de interferência no processo eleitoral de 2026.
Isso porque o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se apresenta como candidato à reeleição e Trump defendeu, em postagens em redes sociais, que Bolsonaro deve ser submetido ao “julgamento” do povo.
Em uma nota divulgada por Lula na quarta-feira, o presidente disse que o país não aceitaria qualquer tipo de tutela.
“O Brasil é um país soberano com instituições independentes que não aceitará ser tutelado por ninguém”.
Em entrevista concedida ao Jornal Nacional, da TV Globo, na quinta-feira, Lula voltou a criticar a postura de Trump.
“É inaceitável que o presidente Trump mande uma carta pelo site dele e comece dizendo que é preciso acabar com a caça às bruxas. Isso é inadmissível”, disse.
Na sexta-feira (11/7), Trump falou publicamente sobre o caso e disse que, no momento, não pretende conversar com Lula.
“Talvez, em algum momento, eu falarei com ele. Agora, não. Eles estão tratando o presidente Bolsonaro muito injustamente. Ele é um bom homem, sabe? […] Ele também é muito honesto e eu conheço os honestos e os desonestos”, disse o norte-americano.
Em meio a essa troca pública de críticas e diante da possibilidade de um tarifaço sem precedentes na história brasileira, a BBC News Brasil procurou especialistas em relações internacionais com uma pergunta: este é o pior momento das relações entre Brasil e Estados Unidos?
Para os especialistas ouvidos pela reportagem, a resposta é inequívoca.
“Criou-se, realmente, uma agressão injustificada do ponto de vista político e econômico. Eu não conheço nenhum outro episódio tão grave nas relações entre o Brasil e Estados Unidos em dois séculos de existência dessas relações”, diz à BBC News Brasil o ex-ministro da Fazenda e ex-embaixador do Brasil em Washington, Rubens Ricupero.
“Sem dúvida nenhuma, posso dizer que esse é o pior momento”, diz à BBC News Brasil o ex-secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República entre 2016 e 2018 e consultor internacional do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), Hussein Kalout.
Ainda de acordo com os especialistas, o Brasil se encontra em uma situação delicada porque, ao vincular as tarifas ao julgamento de Jair Bolsonaro, o governo Trump não teria deixado margem de negociação para o governo brasileiro.
Na avaliação deles, a atual crise pode deixar cicatrizes longevas no relacionamento entre os dois países e vai demandar enormes esforços diplomáticos da parte brasileira para tentar minimizar o impacto das tarifas prometidas.
Crédito, Alan Santos/Presidência da República
‘Intimidação e coerção’
Brasil e Estados Unidos são, ao mesmo tempo, as duas maiores economias e democracias do hemisfério americano. O relacionamento bilateral dos dois países completou 200 anos em 2024 e foi celebrado por Lula e pelo então presidente Joe Biden.
O professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo, Guilherme Casarões, diz à BBC News Brasil que a proximidade entre os dois países ficou maior a partir da proclamação da República no Brasil, em 1889.
“Até então, o Brasil voltava suas atenções para Londres, capital do então império britânico. Com a proclamação da República, o eixo de atenção brasileiro se volta para Washington”, disse o professor.
Casarões explica que o Brasil se inspirou em uma série de instituições norte-americanas durante os primeiros anos da República e que, desde então, essa relação foi se aprofundando tanto política quanto comercialmente.
“Havia ali um interesse de tornar o Brasil quase uma imagem espelhada dos Estados Unidos ao sul do Equador. Essa era uma discussão efetiva na formação do nosso período republicano, e os Estados Unidos assumiram muito rapidamente o lugar de primeira potência como primeiro parceiro comercial do Brasil”, conta Casarões.
Os Estados Unidos foram, até 2009, o principal parceiro comercial do Brasil, quando o país perdeu o lugar para a China. Atualmente, o país é o segundo principal destino das exportações brasileiras. No ano passado, os dois países comercializaram US$ 80 bilhões em produtos.
Ao longo de dois séculos, dizem os especialistas, houve momentos de tensão nesse relacionamento, mas nada mais grave do que a atual crise.
“Eu não conheço nenhum outro episódio tão grave nas relações entre o Brasil e Estados Unidos em dois séculos de história e desde do início desse relacionamento”, diz o ex-embaixador Rubens Ricupero.
O ex-embaixador é autor de livros sobre as relações entre Brasil e Estados Unidos. Neles, Ricupero descreve o vínculo entre os dois países como uma história marcada por momentos de aproximação e distanciamento. Nenhum, na sua avaliação, como o que existe agora.
“O que aconteceu foi uma tentativa aberta de interferência num assunto da soberania brasileira, tomando partido num problema político, inclusive atacando instituições brasileiras como o Supremo Tribunal Federal”, diz o embaixador.
Na avaliação dele, até então, o pior momento das relações entre os dois países havia sido o apoio dado pelos Estados Unidos ao golpe militar de 1964, que levou o Brasil a uma ditadura que durou 21 anos.
Hussein Kalout faz uma avaliação semelhante sobre o atual momento do relacionamento entre Brasil e Estados Unidos.
“Antes disso (anúncio de Trump), a relação estava fria em função de serem dois governos que têm perspectivas muito diferentes sobre diversos assuntos e sobre o mundo”, afirma Kalout.
Agora, no entanto, esse esfriamento se transformou em outra coisa.
“Agora, a relação está em seu ponto mais baixo. E isso acontece em função da conduta um pouco intimidatória e coercitiva que o presidente Trump tem adotado em relação ao Brasil”, diz Kalout.
Guilherme Casarões segue uma linha semelhante.
“Pensando na relação bilateral, este é o pior momento. O que houve foi uma agressão frontal, aberta e gratuita ao Brasil, com demonstrado interesse de violação da soberania nacional”, afirma o professor.
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Crises anteriores
Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil dizem que as relações entre Brasil e Estados Unidos já tiveram outros momentos de tensão no passado.
Para os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, os piores momentos da história recente do relacionamento entre Brasil e Estados Unidos haviam sido:
- o apoio norte-americano ao golpe militar que aconteceu em 1964;
- a pressão feita pelo governo de Jimmy Carter contra a ditadura por seu programa nuclear e pelas denúncias de tortura a dissidentes, no final dos anos 1970;
- e a revelação de que os Estados Unidos espionavam oficiais do governo brasileiro, inclusive a então presidente Dilma Rousseff (PT), durante o governo do então presidente Barack Obama.
“Em 1962, durante o governo de John Kennedy, quando o João Goulart mostrou dificuldade para limitar o papel da esquerda na coalizão do seu governo, os Estados Unidos se afastaram definitivamente do governo brasileiro e passaram a apoiar o processo que levaria ao golpe de 1964”, diz o professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP), Matias Spektor.
Para Ricupero, o apoio norte-americano ao golpe militar havia sido, até agora, o pior momento das relações entre os dois países.
“O golpe de 1964 tinha sido o momento mais grave. O golpe não foi realizado pelos norte-americanos, mas foi muito estimulado por eles. E logo após o golpe, houve reconhecimento do governo (militar) e apoio maciço. Isso nos levou a uma ditadura de 20 anos”, diz Ricupero.
Documentos oficiais e historiadores apontam que, a partir de 1962, com a renúncia de Jânio Quadros e a conturbada posse de João Goulart, os Estados Unidos passaram a ver o Brasil como um risco, à medida em que Goulart era tido como um político simpático à esquerda influenciada pela antiga União Soviética.
Esse material aponta que os norte-americanos teriam incentivado movimentos a favor da deposição de Goulart e chegaram planejar o envio de uma frota de embarcações militares para apoiar o golpe de 1964.
A operação, no entanto, foi cancelada após os norte-americanos detectarem que não haveria resistência significativa à deposição de Goulart. O episódio ficou conhecido como “Operação Brother Sam”.
Spektor afirma que o cenário que desencadeou no golpe de 1964, na realidade, havia começado em 1962.
Spektor e Casarões avaliam que as relações entre Brasil e Estados Unidos sofreram outro solavanco no final da década de 1970, quando Jimmy Carter venceu as eleições nos Estados Unidos.
Carter, do partido democrata, era um crítico aos abusos de direitos humanos ocorridos em ditaduras latino-americanas. Sua posição contrariava a linha dura do governo brasileiro.
Relatórios sobre a situação dos direitos humanos no Brasil foram divulgados pelo Congresso dos Estados Unidos, criando constrangimentos ao regime brasileiro.
O democrata enviou seu vice-presidente, Walter Mondale, à Alemanha Ocidental para tentar convencer os alemães a abrirem mão do acordo nuclear com o Brasil e o movimento foi mal recebido pelo Brasil.
“A relação degringolou muito rapidamente. Ficou tão ruim que o Brasil decidiu, unilateralmente, denunciar um acordo militar importante que o Brasil tinha à época com os Estados Unidos”, disse Spektor.
O terceiro momento mais crítico, segundo os especialistas, foi em 2013, quando documentos sigilosos de inteligência dos Estados Unidos foram publicados pelo Wikileaks e revelaram que os Estados Unidos haviam grampeado o telefone da então presidente Dilma Rousseff (PT).
Os telefones haviam sido grampeados pela Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês), do governo norte-americano.
“(O episódio) acabou deflagrando uma crise diplomática importante. Dilma cancelou uma viagem importantíssima que faria aos Estados Unidos. Demorou mais de dois anos para que as relações fossem repactuadas, o que aconteceu no fim do governo de Barack Obama”, diz Casarões.
Kalout, no entanto, avalia que mesmo durante o ápice da crise envolvendo a espionagem norte-americana, houve canais de comunicação entre os dois países.
“Nos bastidores, o governo Obama acolheu as reclamações do nosso embaixador em Washington. Houve reuniões de alto nível entre os dois governos e encontros entre as agências de inteligência. Havia canais de diálogo”, diz Kalout.
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Tensão crescente
A crise das tarifas expôs um distanciamento político evidente entre Trump e Lula. Apesar de comandarem as duas maiores economias do hemisfério americano, os dois presidentes nunca conversaram diretamente.
Em 2022, durante as eleições brasileiras, Trump foi às redes sociais, declarou apoio a Bolsonaro e atacou Lula, chamando-o de “lunático radical de esquerda”.
Em 2024, por outro lado, Lula declarou apoio à então adversária de Trump nas eleições norte-americanas, Kamala Harris.
“Nós vimos o que foi o presidente Trump no final do mandato, fazendo aquele ataque contra o Capitólio, uma coisa impensável de acontecer nos EUA”, disse Lula em entrevista a uma TV francesa.
A carta divulgada por Trump em que anunciou as tarifas acompanhou o tom das suas últimas manifestações em redes sociais sobre o Brasil e sobre Bolsonaro.
Em meio a esse distanciamento, o deputado federal licenciado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), se mudou para os Estados Unidos e passou a fazer campanha para que os Estados Unidos aplicassem algum tipo de sanção ao Brasil em função nos processos pelos quais seu pai e outros militantes de direita são investigados.
A expectativa, no entanto, era de que os Estados Unidos pudessem aplicar uma sanção direcionada ao ministro do STF Alexandre de Moraes, que conduz o julgamento de Bolsonaro.
Naquele dia, o bloco de 11 países, dos quais fazem parte a China, Rússia, Brasil e Índia, havia dado início à sua cúpula de líderes, no Rio de Janeiro.
No dia seguinte, Trump foi às redes sociais de novo, desta vez, para defender Jair Bolsonaro.
“O Brasil está fazendo uma coisa terrível no tratamento ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Eu tenho assistido, assim como o mundo, como eles não fazem outra coisa senão irem atrás dele, dia após dia, noite após noite, mês após mês, ano após ano! Ele não é culpado de nada a não ser por ter lutado pelo povo”, disse Trump em seu perfil na rede social Truth Social.
Em outro trecho da publicação, o presidente norte-americano classificou a situação de Bolsonaro como uma “caça às bruxas”.
“O grande povo do Brasil não vai tolerar o que estão fazendo com seu ex-presidente. Estarei assistindo à caça às bruxas de Jair Bolsonaro, sua família e milhares de seus apoiadores muito de perto. O único julgamento que deveria estar acontecendo é um julgamento pelos eleitores do Brasil — chama-se eleição”, continuou.
No mesmo dia, pouco depois de finalizar a Cúpula dos Brics, no Rio de Janeiro, Lula rebateu as declarações de Trump em duas oportunidades. Na primeira, por meio das redes sociais, ele disse que o Brasil não aceitaria interferências.
“A defesa da democracia no Brasil é um tema que compete aos brasileiros. Somos um país soberano. Não aceitamos interferência ou tutela de quem quer que seja. Possuímos instituições sólidas e independentes. Ninguém está acima da lei. Sobretudo, os que atentam contra a liberdade e o estado de direito”.
Em outro momento, em uma entrevista coletiva, Lula disse que Trump não deveria dar “palpite” sobre o Brasil.
“Eu não vou comentar essa coisa do Trump e do Bolsonaro. Tenho coisa mais importante para comentar do que isso. Este país tem lei. Este país tem regras e este país tem um dono chamado povo brasileiro. Portanto, dê palpite na sua vida e não na nossa”, disse o presidente.
A situação atingiu o ápice na quarta-feira, quando Trump divulgou a carta e anunciou as tarifas sobre o Brasil.
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E o futuro?
Para todos os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, o futuro das relações entre Brasil e Estados Unidos é, agora, incerto. Ricupero ressalta que ao atrelar as tarifas à situação de Bolsonaro, os norte-americanos deixaram pouca margem de manobra para o Brasil à medida em que o governo não deveria e nem teria como interferir no julgamento do ex-presidente.
Ele argumenta que, do ponto de vista econômico, as tarifas não se justificariam porque os Estados Unidos teriam um superávit de US$ 400 bilhões em produtos e serviços na balança comercial com o Brasil nos últimos 15 anos.
“Para poder ter uma conversa, só se ela for colocada em outras bases, sem ameaças e em bases puramente econômico-comerciais. Tomar partido em favor de uma pessoa não tem fundamental algum”, disse o ex-embaixador.
Matias Spektor diz que, agora, o Brasil deve tentar manter canais de negociação abertos com os Estados Unidos e insistir em algum tipo de negociação comercial.
“O desafio, agora, é o governo brasileiro montar uma resposta às tarifas que permita, de um lado, controlar os danos e, de outro, tentar manter algum tipo de espírito diplomático de engajamento. É importante que o Brasil não feche os canais de diálogo totalmente para que seja possível manter algum tipo de negociação”, afirmou.
Guilherme Casarões também defende que o governo continue tentando encontrar canais de negociação com os norte-americanos. Ele avalia, no entanto, que diante das incertezas sobre como o opera o governo Trump e da proximidade das eleições presidenciais de 2026, fique ainda mais difícil restabelecer boas relações com os Estados Unidos.
“O que se espera é que o Brasil consiga manter uma relação minimamente administrada para tentar negociar essas tarifas, talvez postergá-las ou encontrar outro resultado […] O grande fator de incerteza é que há eleições no ano que vem. O governo brasileiro pode entender que não há como conversar com os EUA e que a melhor opção é incensar o nacionalismo dentro do Brasil”, diz Casarões.
Kalout, por sua vez, diz que, caso o Brasil não consiga reverter a disposição norte-americana de impor tarifas sobre o país, não haverá outra opção a não ser retaliar.
“O Brasil tem mapeado todas as vulnerabilidades da relação comercial e sabe onde e como retaliar e, tenho certeza, se houver inflexibilidade, o Brasil vai aplicar a lei da reciprocidade. Não há como não aplicar. Do contrário, estaremos submissos a uma extorsão indevida”, disse.