Na noite desta sexta-feira (5), o Teatro Dragão do Mar pulsou diferente. O público que escolheu acompanhar a palestra magna Soberania Criativa: o direito de imaginar o futuro foi presenteado com muito mais do que um debate — havia um território simbólico onde memória, dor, beleza e rebeldia se encontraram. Sob a mediação de Adriana Barbosa, diretora executiva do Instituto Feira Preta, três vozes potentes — Rita Von Hunty, Russo Passapusso e Luiz Carlos Vasconcelos — abriram caminhos para pensar o Brasil.
Ancestralidade, infância, território, silêncio, ferida, festa. Tudo coexistiu num diálogo onde Rita Von Hunty, crítica cultural e educadora, provocou o público com a lucidez cortante de quem sabe que criatividade nunca foi ornamento: é ferramenta de sobrevivência. “Um povo sem imaginação é um povo controlado”, disse, rompendo qualquer ilusão de neutralidade.
Ela defendeu a educação artística desde a infância como coluna vertebral de uma emancipação real — não a que é concedida, mas a que se constrói coletivamente. E lembrou: há dor nos processos criativos que nascem da falta, da urgência, da necessidade. Criar é rebeldia. Imaginar é assumir o próprio poder.
Com a força de quem enxerga a cultura como campo de disputa e de libertação, Rita aprofundou o debate com frases que pareciam flechas lançadas no escuro para abrir passagem. E lembrou que o Brasil vive há décadas uma tentativa contínua de domesticar a criatividade, “embranquecer nossos símbolos, pasteurizar nossas narrativas, empacotar nossas estéticas pra caber na prateleira do mercado global”. E, naquele instante, parecia que o Dragão do Mar inteiro respirava junto, reconhecendo a urgência da fala.
Luiz Carlos Vasconcelos, por sua vez, tirou o teatro e o circo da teoria e devolveu ao público sua textura de mundo. Recontou a infância na Paraíba como quem acende uma lamparina antiga: o circo itinerante, os melodramas, o Cavalo Marinho, as figuras que o “fundaram” antes mesmo que ele soubesse o que era ser artista. Suas memórias lembraram que, muito antes das políticas públicas, o Brasil já era conduzido por um soberano cultural que viajava em lonas puídas, levando encantamento para interiores profundos.
E, então veio o músico Russo Passapusso, incendiando a mesa com a força do território e da sobrevivência. Falou de nomes herdados, de famílias dispersas, de músicas que “já existiam” antes de ele ouvi-las. “Isso que a gente tem de criar com atividade, a atividade nos cria, dessas relações que a gente tem de força ancestral, isso força a gente a dar um jeito em nossa existência, em nossa identidade, no nosso caminho”.
Para ele, criatividade não é apenas pensamento: é corpo, é intuição, é trauma virando caminho. “Temos que repetir, transformar, pra gente conseguir criar coisas que tenham um viés, que tenham solo, que tenham uma crença, que tenham sentido de coletividade”, defendeu.
Entre uma memória e outra, Adriana amarrava fios invisíveis: terreiros, clubes sociais negros, rodas de capoeira, coletividades que inventaram tecnologias ancestrais muito antes de o termo virar tendência. Eram lembranças, mas também advertências — sem repertório compartilhado, não há futuro que se sustente.
O debate ainda atravessou os desafios atuais: a plataformização do trabalho, a compressão do tempo, a tentativa constante de empacotar nossas narrativas para caberem no mercado global. Mas ali, no Dragão do Mar, ficou evidente que o Brasil tem um trunfo que ninguém sequestra: a imaginação como força vital.
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