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Crédito, Netflix
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- Author, Daniel Gallas
- Role, Da BBC News Brasil em Londres
O jornalista e escritor britânico James Bloodworth passou meses tentando responder a essas perguntas — entrevistando gurus que dizem ensinar homens a controlar mulheres e frequentando conferências de comunidades de pílula vermelha. O resultado está em seu livro Lost Boys: A Personal Journey Through the Manosphere (“Garotos Perdidos: Uma Jornada Pessoal Pela Machosfera”, em tradução livre).
Em uma das conferências, nos Estados Unidos, homens pagavam US$ 10 mil (cerca de R$ 55 mil) para assistir a palestras e aprender a se tornar o “homem que os outros homens querem ser”.
Mas uma das principais descobertas de Bloodworth ao escrever seu livro é que ele sequer precisava ter se esforçado tanto para encontrar esse conteúdo.
Estudos recentes mostraram que basta que jovens meninos assistam a um vídeo com conteúdo misógino para, dentro de uma hora, serem expostos a vídeos ainda mais agressivos que já foram banidos no passado. Em questão de horas, suas redes são “colonizadas” com conteúdo machista.
Tate aparece como uma das principais influências do protagonista da série fictícia Adolescência, do Netflix — um dos maiores fenômenos televisivos deste ano, e que mostra como o universo da machosfera é capaz de radicalizar jovens meninos.
Algo que o preocupou bastante é que esse conteúdo se espalha pelas redes porque existe um modelo de negócios bastante sofisticado usado por uma pequena quantidade de “gurus” que ganham dinheiro. E na verdade, diz Bloodworth, muitos desses gurus são meros golpistas, que exploram inseguranças das suas vítimas para ganhar dinheiro.
Mas com uma diferença: além de afetarem financeiramente as vítimas diretas desses golpes, o conteúdo desses vídeos promove uma doutrinação ideológica de homens — sobretudo adolescentes — contra as mulheres. E isso faz com que ideias misóginas radicais que antes estavam confinadas a um pequeno grupo marginal alcancem grandes massas de pessoas.
A técnica principal desse modelo de negócios — ou de golpes, como prefere o escritor — é semear a insegurança nos homens.
E uma das principais ferramentas que está presente em quase todos os cursos e palestras é a regra 80/20 — a ideia de que existe uma escassez de mulheres, e que os homens precisam se destacar entre os demais. Oitenta por cento das mulheres estariam interessadas em apenas 20% dos homens — os “homens alfas”, que são bem-sucedidos e dominadores.
O temor de não pertencer a esses 20% serve como uma porta de entrada para muitos homens entrarem no universo da machosfera.
Outra tática comum — essa também presente no mundo dos golpes de apostas online — é a da ilusão da riqueza. Em uma conferência nos EUA, os organizadores alugavam mansões e Lamborghini para que os presentes pudessem tirar fotos e postar em seu Instagram, dando a impressão que tinham uma vida de luxo.
Confira abaixo trechos da entrevista de James Bloodworth à BBC News Brasil na qual ele fala sobre o que descobriu no mundo da machosfera.
BBC News Brasil: Seu livro começa em um momento da sua vida em que você buscava orientação dos chamados “pick up artists” (“artistas da sedução”), que ensinam homens a “pegar” mulheres. Você pode me contar um pouco sobre esse período da sua vida?
James Bloodworth: Isso foi há 19 anos. Basicamente, eu morava em Somerset, que fica no interior da Inglaterra, com minha avó. Eu estava voltando para a faculdade.
Minha vida não estava indo a lugar nenhum. Eu não estava saindo muito e minhas habilidades sociais estavam meio atrofiadas. Eu já tinha sido uma criança tímida.
Voltei para a faculdade achando que isso resolveria meus problemas em termos de socialização, pois estaria sendo forçado a ficar perto das pessoas, mas isso não resolveu meus problemas e não consegui arrumar uma namorada também.
Eu pensava “quando eu voltar para a faculdade vai ser fácil porque vou ficar perto de pessoas e garotas de novo”. Mas não aconteceu. Nada aconteceu.
Um dia cheguei em casa e estava pensando em uma garota de quem eu gostava na faculdade e pesquisei no Google “como conseguir uma namorada”.
Eu encontrei um fórum de artistas da sedução onde havia esses caras que diziam ter todas as respostas. Eles dizem ter um roteiro sobre como fazer uma mulher virar sua namorada.
E isso foi bem atraente para mim. Até então, tudo que eu tinha tentado havia falhado.
Nessa época, o livro do Neil Strauss O Jogo — A Bíblia da Sedução havia sido lançado e eu comprei também.
Depois me inscrevi em um treinamento que aconteceu em Londres no início de março de 2006.
Passei alguns meses na faculdade, tentando abordar garotas usando alguns desses métodos e técnicas.
Nos fóruns, eles costumavam criar desafios de abordar cinco mulheres por dia no campus e perguntar as horas ou o número do celular. Algumas dessas coisas me ajudaram.
Eu não conseguia achar esse tipo de informação e tinha muita vergonha de perguntar para amigos e familiares.
Mesmo com toda misoginia nessa comunidade, não havia nenhuma sensação de vergonha de estar nela.
BBC News Brasil: Esses encontros e comunidades que você descreve de 20 anos atrás não parecem tão perigosos quanto os grupos que vemos hoje em dia. Mas as sementes de uma masculinidade mais tóxica já pareciam presentes naquela época. Hoje, olhando para o passado, você sente que poderia ter acabado se radicalizando se tivesse seguido nessas comunidades?
Bloodworth: Levou um tempo para perceber que essas pessoas não tinham as respostas. Eu me interessei por essas coisas por uns 6 meses.
A parte útil desses conselhos foi que eles me estimularam a sair mais. Eu costumo dizer que 20% do que eles ensinavam era útil, e 80% era lixo.
Nesses 20% estão conselhos como você precisa sair três vezes por semana e fazer um esforço ativo para socializar com as pessoas. Quando você faz isso, suas habilidades sociais melhoram gradualmente e você vai começar a conhecer mais mulheres. Essa parte era verdade.
Mas eu logo percebi que podia praticar essa parte boa e não precisava de todo o resto, que eram coisas misóginas e manipuladoras.
Isso, no longo prazo, vai piorar sua relação com as mulheres. Você vai acabar estragando seus relacionamentos por ficar incorporando essa personalidade de artista de sedução.
Outra diferença importante que não me fez ser “sugado” pela machosfera na época é que não existiam algoritmos que me puxassem mais a fundo para esse mundo. Eu entrava em fóruns e ficava lendo postagens por algumas horas de noite.
E simplesmente fechava os fóruns. Meu navegador de internet não era “colonizado” por diversos tipos de conteúdos sobre masculinidade, golpistas de YouTube e coisas do tipo.
Em 2018, quando comecei a escrever esse livre, demorou menos de uma semana, depois de eu assistir a vídeos de Jordan Peterson [escritor e influencer canadense que publica vídeos considerados misóginos], para minhas timelines ficarem repletas de pessoas falando sobre masculinidade, culpando feministas pelas dificuldades dos homens, culpando a esquerda e progressistas.
Um estudo na Austrália no ano passado mostrou que um garoto que assistisse a um vídeo de Jordan Peterson no Instagram receberia dentro de uma hora uma sugestão para ver um vídeo de Andrew Tate. E se ele assistisse a um vídeo de Andrew Tate, ele receberia praticamente só sugestões de mais conteúdo de Tate.
O algoritmo facilitou para os homens caírem no buraco sem fundo desse conteúdo extremista. Alguns criadores só colocam em seus vídeos um pouco de conteúdo mais extremista, mas com o passar do tempo você acaba consumindo vídeos bem sinistros.
BBC News Brasil: Quais foram as experiências mais chocantes que você viu nesse universo?
Bloodworth: Para esse livro, que eu comecei a pesquisar em 2018, eu voltei para esse mundo. Comecei a frequentar esses cursos, programas e workshops.
A coisa mais imersiva que fiz para o livro foi ir para os EUA, para Las Vegas, onde fiquei mais de seis meses, entre idas e vindas, disfarçado, em um curso para homens chamado programa Men Of Action (“Homens de Ação”), que custava US$ 10 mil para participar do programa e envolvia uma série de mentorias com um guru, Michael Sartain, o líder do curso, por um período de seis meses.
E também havia eventos presenciais, como seminários sobre como ser um macho alfa de alto status e sessões de fotos no deserto de Nevada, onde a empresa organizadora alugava Lamborghinis para que os homens tirassem fotos para seus Instagram.
Era tudo voltado para você se tornar um homem de alto status online.
Mansões luxuosas eram alugadas para sessões de fotos, com casas enormes em Nevada, para sessões de fotos — para parecer que as pessoas que pagavam pelo curso estavam morando lá.
Mas isso tudo era mais vergonhoso do que exatamente chocante.
O que era mais chocante era a linguagem rotineira que as pessoas usavam sobre as mulheres, que é bastante depreciativa.
Eu passei um tempo em Orlando, na Flórida, com um movimento de pílula vermelha da machosfera.
Tomar a pílula vermelha, para eles, significa ver a verdade de que os homens são oprimidos pelas mulheres, e não o contrário. E o feminismo seria, na verdade, um movimento para oprimir os homens.
Eu esperava ouvir discursos sobre mulheres, discursos sobre feminismo e discursos sobre falsas acusações de estupro, “no-fault divorce” [ou divórcio sem culpa, direito que mulheres e homens têm de se divorciar sem precisar comprovar que houve uma traição ou crime praticado pelo cônjuge] e fraudes de paternidade. Todas essas questões polêmicas eram muito discutidas lá, mas também houve muita coisa política.
Havia uma espécie de afiliação com Donald Trump e o movimento MAGA (“Make America Great Again”). Em um dos eventos, conheci um cara que foi preso nos EUA por invadir o Capitólio em 6 de janeiro.
Havia muita retórica incendiária em torno do início de uma guerra civil nos EUA para livrar o país dos liberais, das pessoas LGBT, do feminismo. Havia muito antissemitismo também.
Algumas pessoas se gabavam de ter conhecido Lyndon McLeod e tinham até fotos com ele. [McLedo é um extremista misógino que escrevia livros de ficção científica. Em 2021, ele matou a tiros cinco pessoas em Denver, no Estado do Colorado].
Crédito, Reuters
BBC News Brasil: Qual é o perfil dos homens que estão nessa machosfera?
Bloodworth: Eu conheci diferentes tipos. Conheci pessoas comuns que passaram por algum tipo de situação traumática que criou uma vulnerabilidade ou insegurança nelas. Homens que foram vítimas de relações abusivas. Geralmente quando se fala em relações abusivas, é a mulher que é a vítima. Mas há casos em que o homem é vítima, e essa minoria dos casos costuma a ser levada menos a sério.
Eu conheci pessoas que tinham problemas com as mulheres desde sempre, e o material que encontraram online racionalizou essa hostilidade que eles já sentiam contra as mulheres.
Isso é algo que já existe hoje no mainstream. Não há uma demarcação clara entre o que é a machosfera e o que é o patriarcado do mainstream.
Mas tudo mudou hoje na forma como as pessoas são radicalizadas principalmente por causa dos algoritmos — e principalmente entre garotos.
Eu conheci garotos jovens que consomem material pelo YouTube. Eu conheci um garoto de 13 anos que entrou no YouTube e começou a assistir a vídeos de kickboxing e outros esportes de combate.
Isso levou ele a vídeos de Andrew Tate, que já foi kickboxer. O garoto me falou que de repente encontrou Tate, que é bem carismático e bem informado, e começou a assistir aqueles vídeos. E aos poucos começou a ouvir Tate falar coisas sobre mulheres e sobre feminismo.
E Tate o fazia se sentir como um idiota, o rebaixando e o diminuindo. Dizendo coisas como “você é pequeno, você é um macho beta”. Já Tate é musculoso e tem um estilo de vida de ostentação no Instagram. E ele se apresenta como salvador e guia.
São os próprios gurus que fazem as pessoas se sentirem inseguras, especialmente se você é um adolescente.
É como um golpe. É o que os artistas de sedução também faziam no passado. Eles diziam: se você não ouvir meus conselhos, nunca vai conseguir uma namorada.
Eles dizem que as sociedades mudaram e que agora está em vigor a regra 80/20 — que 80% das mulheres estão correndo atrás de apenas 20% dos homens. Ou até mesmo que todas as mulheres estão correndo atrás de apenas 20% dos homens.
E que se você não tomar uma atitude, será um desses homens que é deixado para trás. Que você nunca vai ter uma namorada e nenhum homem jamais vai te respeitar.
E logo eles vêm com o papinho de vendas: eu tenho um curso para homens como você. Se inscreva agora, por tempo limitado. O que um dos gurus dizia, literalmente, é que ele tinha a arca de Noé — que ele podia salvar alguns homens, e que no futuro apenas 10% dos homens transariam com todas as mulheres.
Eles constantemente batem nessa tecla, da insegurança dos homens. Quando você envelhece, você fica mais imune a isso. Mas não é o caso de um jovem adolescente pouco versado no mundo da mídia que recebe essas mensagens diretamente nos seus telefones por homens carismáticos.
Crédito, Divulgação
BBC News Brasil: Você mencionou perfis bem distintos de pessoas — desde garotos de 13 anos que estão online a homens que pagam um curso de US$ 10 mil em Las Vegas. Isso sugere que a faixa de homens expostos e seduzidos pela machosfera é bem ampla — incluindo diversas idades e situações financeiras. É isso mesmo?
Bloodworth: Em Las Vegas eu fui em um dos cursos pagos, mas muitas dessas pessoas também disponibilizam conteúdo gratuito online. Se você não tem dinheiro para o curso, pode simplesmente assistir online.
Em Vegas, no curso, havia uma variedade de idades. A maioria das pessoas tinha entre 20 e 30 anos, alguns na faixa dos 40 anos. E às vezes havia uma ou duas pessoas na casa dos 50 anos.
Geralmente eram pessoas que tinham passado por divórcios recentes.
Muitos obviamente tinham bastante dinheiro, mas eu não diria que eram todos ricos. Eu conheci alguns jovens que tinham pouco dinheiro, mas tinham economizado para estar lá. Eles sentiam que isso era algo urgentemente necessário para suas vidas.
Eles realmente acreditavam na retórica da machosfera e na regra 80/20. Isso é a cola que mantém toda a machosfera unida — essa ideia de que após a revolução sexual as mulheres estão atrás de um número reduzido de homens.
E havia outros homens que tinham bastante dinheiro. Pessoas ricas com grandes negócios de sucesso que descobriram que o dinheiro não estava dando a eles o status elevado e as opções românticas que desejavam.
Era um espectro diverso de pessoas, e não eram apenas homens brancos. Mas quanto mais políticos eram os eventos, mais gente branca tinha. Principalmente nos movimentos de pílula vermelha.
Mas não eram apenas essas pessoas incels. Era uma mistura de tudo que é tipo de gente da sociedade.
Crédito, Reuters
BBC News Brasil: Pelo que você descreve, a machosfera é criada por modelos de negócios bastante sofisticados. Mas esses negócios têm alcance geral ou seguem sendo apenas marginais?
Bloodworth: A machosfera mais radical ainda é um movimento marginal, mas isso não significa que as ideias da machosfera não possam se infiltrar no mainstream. Eu acho que esse é realmente o perigo.
No caso da série Adolescência do Netflix, havia uma visão bastante apocalíptica sobre a machosfera, com um menino que assassina uma colega de escola, aparentemente por causa do seu interesse na machosfera e em algumas dessas ideias tóxicas.
Mas não é isso que geralmente acontece. Há exemplos desse tipo de violência estilo pílula vermelha, mas geralmente é tudo um pouco mais sutil. Geralmente o que acontece é o surgimento de comportamentos coercitivos e controladores e a violência doméstica aparecerem nos relacionamentos românticos.
Estatísticas recentes mostram que, no Reino Unido, 53% dos homens de 16 a 24 anos acreditam que a maioria das mulheres se sente atraída apenas por um pequeno grupo de homens, ou seja, acreditam na regra 80/20. Ou seja, já virou uma visão mainstream — da maioria.
E 51% da mesma faixa etária acreditam que fomos longe demais na promoção da igualdade das mulheres e agora estamos discriminando os homens. Novamente é uma maioria na geração Z, em comparação com os 35% da população geral do Reino Unido que pensam assim.
Uma pesquisa nos EUA do ano passado revelou que para a maioria dos homens a sociedade se tornou muito branda e feminina.
Um quarto dos adolescentes tem uma visão positiva de Andrew Tate, entre aqueles que o conhecem.
Isso tudo mostra como algumas dessas ideias marginais podem se infiltrar no mainstream.
A machosfera está de um lado e o mainstream está do outro, mas não existe uma demarcação clara de onde começa um e acaba o outro.
BBC News Brasil: Sobre a série Adolescência, uma coisa que chocou muitos é que mesmo quem vem de uma família que oferece algum nível de apoio e acompanhamento ainda está vulnerável a essas ideias tóxicas. Isso é um perigo real?
Bloodworth: É muito bom se você tem uma família que te apoia e uma situação estável.
Muitos dos homens que eu conheci pareciam normais, por assim dizer, pelo menos superficialmente. Mas quanto mais fundo você ia na história deles, acabava descobrindo que vinham de famílias disfuncionais, com um pai abusivo ou algo assim.
Ou simplesmente tinham alguma insegurança desde a infância, que é explorada pelos gurus da machosfera.
Mas a radicalização ainda pode acontecer mesmo com alguém que vem de um lar estável.
Todos nós temos períodos em que nos sentimos mais vulneráveis e inseguros, e que não conseguimos conversar com os pais. Todos nós somos um pouco suscetíveis a isso, até certo ponto. Eu acho que é arrogante pensar que não somos assim.
Não é possível “vacinar” completamente seus filhos do mundo apenas com um lar estável, mas isso ajuda.
De novo, eu acho que os celulares e as mídias sociais mudaram bastante o jogo. Porque o que está acontecendo é que por mais que ajude uma pessoa a se socializar — adotando valores como igualdade de mulheres, não tratando homens como superiores — isso tudo pode ser contornado por esses gurus da machosfera que falam direto pelo telefone celular, escapando do controle de professores e pais.
Eles geralmente são carismáticos e têm um estilo de vida luxuoso. Se você é um menino adolescente, você é seduzido por isso. Essa pessoa vira seu modelo de pessoa e isso é um problema.
BBC News Brasil: Muitos na machosfera denunciam as “big techs” (grandes empresas de tecnologia) como seus inimigos — dizendo que são constantemente censurados e “desmonetizados”. Mas muitos vêem o contrário: as “big techs” como responsável por levar a machosfera ao grande público. Qual a sua visão?
Bloodworth: Em uma conferência que participei em 2022 houve um discurso de Anthony Johnson, presidente da Manosphere [empresa que organiza eventos com temática machista], contra as grandes empresas de tecnologia em que ele comparou o YouTube a um gulag por desmonetizar e remover vários conteúdos de masculinidade desse tipo.
E houve um período nos anos 2000 e 2010 em que o YouTube começou a derrubar esses vídeos e desmonetizando vídeos, impedindo que esses criadores ganhassem a vida desse jeito.
No Facebook e no Twitter também havia mais controle. As empresas começaram a perder receita de publicidade, porque os anunciantes não queriam ver seus anúncios do lado de conteúdo misógino, neonazista ou fascista.
Mas houve uma reação da direita radical contra isso, e o surgimento de várias plataformas alternativas como o Rumble, ou o Truth Social, de Donald Trump.
Mas agora que Trump voltou à Presidência novamente nos EUA, pessoas como Mark Zuckerberg, que estão responsáveis em última instância pela moderação do Facebook e Instagram, estão assumindo posturas do tipo “não vamos mais censurar tanto conteúdo” e “não vamos retirar tanta desinformação do ar”.
Houve um realinhamento das empresas de tecnologia contra a remoção de pessoas de plataformas.
O YouTube é um pouco diferente, mas há um paradoxo ali.
Foi o YouTube que realmente matou a comunidade de “artistas da sedução” nos anos 2000 e 2010. Empresas que existiam na época, como a Real Social Dynamics, tiveram que mudar seu conteúdo para autoajuda, porque não conseguiam mais ganhar dinheiro com seus vídeos de sedução por causa do YouTube.
Mas o paradoxo é que o algoritmo do YouTube é justamente o motivo pelo qual algumas dessas pessoas conseguiram ficar famosas. E o banimento dessas pessoas acabou não funcionando.
Eu não tenho certeza de qual é a solução para esse problema. Você pode ver todo o conteúdo de Andrew Tate em plataformas como o Rumble.
Talvez seja melhor dificultar um pouco as buscas para impedir que alguns garotos encontrem esse conteúdo. Mas era pior quando o YouTube simplesmente recomendava essas coisas.
Crédito, Divulgação
BBC News Brasil: Desde que Elon Musk comprou o Twitter, muitas pessoas que haviam sido banidas voltaram às redes sociais. Você vê muitas dessas personalidades que considera tóxicas de volta nas grandes redes hoje?
Bloodworth: Sim, o X se tornou o epicentro desse conteúdo agora. Todos os velhos gurus estão lá, como Andrew Tate e um monte de golpistas da machosfera.
No X, eles estão dando golpes, postando vídeos, pedindo doações, vendendo cursos. Tudo migrou para lá.
Tem coisas chocantes lá: conteúdo misógino e racista, contas neonazistas que voltaram ao ar. O que piora muito é que qualquer um pode comprar os selos azuis [o processo de certificação do X].
E assim esse é conteúdo impulsionado pelo algoritmo para o topo dos feeds das pessoas.
BBC News Brasil: Existe muito conteúdo machista que se espalha facilmente pela internet. Mas você encontrou também conteúdo promovendo uma masculinidade mais sadia?
Bloodworth: Existem pessoas que promovem esse conteúdo, mas o problema é que elas não são golpistas. Quem promove esse conteúdo não o classifica como conteúdo sobre masculinidade, mas sim sobre política e cultura. E é um conteúdo sofisticado — e sofisticação não consegue chegar ao topo das timelines e feeds.
Sofisticação não gera imagens e manchetes chocantes que despertam sentimentos e atraem clicks.
Alguns pessoas que escrevem sobre isso são Richard Reeves, um britânico que mora nos EUA e escreveu um livro chamado “Of Boys and Men”. Fui em um retiro sobre masculinidade que achei muito bom e positivo. Também tem um policial aposentado no Reino Unido chamado Graham Golden, que fala sobre “masculinidade positiva”. Tem um acadêmico americano chamado Scott Galaway que produz conteúdos interessantes.
Mas como eles não estão tentando ganhar a vida com isso, eles não montaram um esquema de negócios golpista.
BBC News Brasil: Você traça no seu livro uma espécie de história da machosfera. E na medida em que o livro avança e o tempo passa, essa história vai ficando cada vez mais sinistra. As coisas estão piorando?
Bloodworth: Foi assim que me senti ao longo dos anos. As coisas foram piorando cada vez mais. No começo era algo muito marginal e hoje está cada vez mais mainstream.
Os exemplos mais radicais da machosfera estão sendo punidos e as pessoas estão percebendo que figuras como Andrew Tate são caricatas.
Mas o problema maior são as personalidades que vêm depois — mais competentes politicamente e sem um histórico de polêmicas e processos judiciais. Você vê algumas dessas figuras entre a direita radical populista na Europa, pessoas que são mais suaves e falam com uma linguagem mais cheia de nuances, mas com a mesma agenda tóxica.
Muitos falam hoje, por exemplo, sobre a crise da fertilidade, e que o problema disso é que as mulheres estão trabalhando mais em vez de ficar em casa cuidando da reprodução.
Essas ideias seguem pingando no mainstream e se normalizando. E a próxima onda desses golpistas será mais bem polida e palatável.
BBC News Brasil: Como as mulheres podem se proteger de tudo isso?
Bloodworth: É preciso ler sobre esse mundo e aprender a identificar os sinais de alerta, como comportamento coersitivo e de controle.
A machosfera faz com que os homens se sintam inseguros. Isso foi o que aprendi com os muitos homens com quem passei muito tempo. Existe uma insegurança profunda. Às vezes ela já é pré-existente, mas às vezes ela é alimentada pela machosfera.
Essa insegurança se manifesta na tentativa de controlar as mulheres.
É útil para as mulheres aprenderem sobre a machosfera, sobre as técnicas e comportamentos que aparecem ali.
Existe também comunidades de mulheres “pílulas vermelhas” e “trad wives”, grupos que falam sobre papéis de gênero definidos na sociedade.
Mas o risco maior para as mulheres são os homens ao seu redor que entram nesse mundo.
Eu já vi muitos relacionamentos em que os homens começaram a se interessar por esses assuntos. Nesses casos, é mais fácil que esses homens recebam conselhos de outros homens, já que eles tendem a não levar as mulheres a sério — ou a achar que elas estão os controlando. É melhor buscar um amigo homem que possa conversar com esse homem.
Geralmente quando os homens percebem que esses gurus são meros golpistas, fica mais fácil de convencê-los a desistir dessas ideias.