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Rio concentra 43% das apreensões de fuzis, armas de guerra que desconfiguraram o estado em cinco décadas


Vila Kennedy, Zona Oeste do Rio: criminosos com fuzis atravessados no peito vigiam a entrada da comunidade. Numa rua de Botafogo, imagens de câmeras mostram o momento em que assaltantes, numa madrugada de domingo, usam o mesmo tipo de arma para tentar roubar o carro de um morador. Bandidos são flagrados testando essas “máquinas mortíferas” num verdadeiro centro de treinamento do tráfico do Complexo da Maré, onde o arsenal também é exibido em bailes funk. Os estampidos que rompem o silêncio da Serra da Grota Funda são de tiros que assassinaram um agente da elite das forças de segurança. Para enfrentar o poder bélico do crime, em quase qualquer rua é possível cruzar com carros da polícia com o bico de fuzil para fora da janela — e poucos se abalam com a cena, já banalizada.

Faz quase cinco décadas que essas armas de uso militar e símbolo de guerra se tornaram parte da paisagem do Rio. Enquanto em outros países e alguns estados brasileiros o fuzil é raramente empregado, no território fluminense mata, mutila e destrói famílias. Circula livremente em áreas sob domínio do crime e é utilizado até para assaltar pedestres. Virou a garantia para controlar comunidades inteiras, impor o terror e subjugar pessoas, como mostra a primeira reportagem da série “O gatilho da violência”.

Apesar desse cotidiano, o uso do armamento por organizações criminosas em ambiente urbano é considerado uma excepcionalidade.

— No mundo, o emprego dessa arma ocorre em ações muito específicas, como atentados terroristas ou no novo cangaço (ataques a agências bancárias no interior do Brasil). Não é uma arma normalmente empregada para domínio territorial. Isso, que saibamos, só ocorre no México, na Colômbia e no Rio — afirma o delegado Vinicius Domingos, da Coordenadoria de Fiscalização de Armas e Explosivos (CFAE) da Polícia Civil fluminense. — Aqui, a possibilidade de controle de território é sustentada pelo fuzil, sem o qual as quadrilhas não têm como exercer sua força e explorar uma gama de crimes. Sem essa arma, não haveria os confrontos da forma como conhecemos. Não existiriam tiroteios entre bandidos e policiais que duram 50 minutos, impactam a vida da população e resultam em balas perdidas.

O número de apreensões dá uma dimensão de um Rio sempre no alvo. O estado concentra 37,39% do total de fuzis retirados das mãos de bandidos no Brasil em 2024. Foram 732, contra 570 de São Paulo (segundo colocado no ranking) no mesmo período. Quando se analisa o período entre 2015 e 2024, disponível nos banco de dados do Ministério da Justiça, os dados são ainda mais alarmantes. Em dez anos, foram 4.714 fuzis apreendidos, uma fatia correspondente a 43,07% do total nacional. Isso significa que, a cada dez fuzis encontrados pelas polícias em todo país, quatro foram no Rio.

A série histórica do Instituto de Segurança Pública (ISP) é mais longa. E revela que, de 2007 até o fim de 2024, já foram apreendidos 6.619 fuzis no estado. As armas poderiam equipar de sete a nove tropas do Grupo Tático de Batalhão (BTG) do Exército russo, que atua no conflito na Ucrânia.

O delegado Vinicius Domingos destaca que, além das armas, os criminosos têm se apropriado de táticas de combate para impedir a entrada da polícia nas comunidades, utilizando barricadas, blindados, seteiras e disparando munição indiscriminadamente:

— Vivemos conflitos urbanos inimagináveis. Se acontece em qualquer país, parariam tudo. Mas aqui, convivemos com algo anormal e tratamos como se fosse rotina.

Delegado mostra alguns dos modelos apreendidos com os bandidos no Rio — Foto: Domingos Peixoto
Delegado mostra alguns dos modelos apreendidos com os bandidos no Rio — Foto: Domingos Peixoto

Dos roubos a agências bancárias ao tráfico de cocaína

Essa é uma história que começa a ser construída no fim da década de 1970 e início dos anos 1980, quando houve os primeiros relatos do uso de fuzis por criminosos. Inicialmente, eram casos isolados e tinham como origem o desvio ou o roubo de armas das Forças Armadas. Em 26 de setembro de 1980, um grupo assaltou um banco em Bonsucesso com um Fuzil Automático Leve (FAL). A surpresa de um inspetor da Polícia Civil revelava como aquilo era uma novidade. “Temos informações de que eles usavam um fuzil automático FAL, arma privativa das Forças Armadas. Isso mostra que os assaltantes não são criminosos comuns”, pontuou, numa época em que a polícia sequer cogitava usar esse armamento.

O primeiro fuzil Colt AR-15 — de fabricação americana, muito usado na Guerra do Vietnã — apreendido no Rio motivou o então governador Moreira Franco, em 24 de novembro de 1989, a convocar toda a imprensa ao Palácio Guanabara. “É absolutamente intolerável que essas armas entrem no Brasil contrabandeadas tranquilamente”, disse sobre o AR-15 encontrado na Favela de Acari. O coronel Emir Laranjeiras era comandante do 9º BPM na época, responsável pela operação que tirou a arma das ruas.

— Quando levamos para o quartel, confesso que eu nem sabia o que era aquilo. Falei o quanto era absurdo continuar a entrar esse tipo de armamento nas favelas pelas mãos das facções. O alerta era que, como nós não tínhamos acesso a esse tipo de arma, se a situação continuasse daquele jeito, muitos policiais morreriam — relembra o oficial.

Moreira Franco observa fuzil Colt AR-15 apreendido com traficantes, em 1989 — Foto: Manoel Soares/Agência O GLOBO
Moreira Franco observa fuzil Colt AR-15 apreendido com traficantes, em 1989 — Foto: Manoel Soares/Agência O GLOBO

A previsão viraria realidade. Os anos 1980 coincidiam com a ascensão do Comando Vermelho. Um dos episódios que chocaram a opinião pública e colocaram o fuzil no centro do debate aconteceu na Rocinha, em 1988. Ednaldo de Souza, o Naldo, chefe do tráfico na comunidade, foi filmado com um fuzil Heckler & Koch, roubado da Aeronáutica, disparando rajadas para o alto.

Exibição de força. O traficante Ednaldo de Souza, o Naldo da Rocinha, faz disparos para o alto com um fuzil em 1988: até então uma raridade — Foto: Reprodução
Exibição de força. O traficante Ednaldo de Souza, o Naldo da Rocinha, faz disparos para o alto com um fuzil em 1988: até então uma raridade — Foto: Reprodução

Roberto Uchôa, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, afirma que, a partir dessa época, teve início uma corrida armamentista — tanto no crime quanto nas forças de segurança. Nas décadas de 1980 e 1990, os equipamentos chegavam para os bandidos pela mesma rota do tráfico de cocaína.

— É o tráfico dessa droga que enriquece as facções e estimula a disputa entre elas, iniciando uma corrida para ver quem tinha mais armas. Em seguida, a polícia também entra nessa disputa — explica Uchôa.

A Polícia Militar recebeu os primeiros fuzis em 1993, por meio de empréstimo do Exército. O modelo cedido aos PMs era o FAL 7,62. Alguns anos depois, a corporação fez sua primeira aquisição própria do armamento.

Em razão do alto poder de fogo, a utilização de um fuzil exige treinamento e controle. Não à toa, a própria polícia evita usar os modelos de regime automático, que possibilita atirar entre 700 e 900 projéteis por minuto. Porém, são justamente esses modelos os mais apreendidos com criminosos, como pondera o delegado da CFAE:

— O modo automático é uma grande capacidade ofensiva nas mãos dos bandidos, uma vantagem desproporcional. Como o criminoso não se importa com quem está ao redor, ele aperta o gatilho e dispara dezenas de projéteis em somente um segundo e meio.

Fuzil como parte da paisagem do Rio: polícia faz patrulhamento com bicos das armas para fora da janela — Foto: Márcia Foletto
Fuzil como parte da paisagem do Rio: polícia faz patrulhamento com bicos das armas para fora da janela — Foto: Márcia Foletto

São 18,2% de toda a área urbana habitada da Região Metropolitana fluminense sob domínio de algum grupo armado, segundo o mais recente Mapa dos Grupos Armados, realizado no ano passado pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni-UFF) e do Instituto Fogo Cruzado. A arma que chegou às facções no rastro das drogas ultrapassou os limites das comunidades dominadas e espalha também espalha hoje o terror nas ruas. Em plena Avenida Brasil, o professor geografia Daniel, de 58 anos — que prefere não revelar seu sobrenome —, teve um fuzil apontado para sua cabeça num assalto.

— Eu tinha plena consciência de que, se aquele homem puxasse o gatilho, minha cabeça seria estraçalhada — relembra a vítima, que teve carro, carteira e celular roubados. — Depois que registrei o crime, um policial me explicou que os bandidos preferem veículos altos, por facilitarem o transporte do fuzil. Ao comprar outro carro, escolhi um modelo mais baixo. Aqui, a gente não escolhe o carro que quer, e sim o que dá mais chance de voltar para casa com vida.

Baleados mudaram as emergências da rede de saúde

A chegada de fuzis às mãos de criminosos do Rio logo impactou as emergências da rede pública de saúde. Os primeiros feridos por armas de longo alcance surpreenderam o cirurgião de tórax Rodrigo Gavina, de 52 anos, que trabalhava no Hospital Municipal Souza Aguiar, no Centro, no início da década de 1990. O médico conta precisou recorrer a estudos de balística e de traumas de guerra para aprender a tratar os pacientes. Segundo ele, que se tornou um dos maiores especialista no atendimento a baleados, era como se fosse uma “doença nova”.

— O centro de gravidade de um projétil de fuzil é diferente do de outras armas. Devido à sua velocidade e instabilidade, ele gira dentro do corpo provocando múltiplos efeitos de cavidade temporária. Esse movimento de expansão e contração suga para dentro do ferimento impurezas da pele, pólvora e fragmentos do próprio projétil, tornando a lesão altamente contaminada. É esse movimento que faz com que um tiro de raspão na costela lesione até o coração. Por isso, tanta gravidade — explica o médico, que hoje é vice-presidente de operações técnicas na Rede D’Or São Luiz.

De acordo com Gavina, a entrada de fuzis no Estado do Rio causou profundas transformações na saúde:

— Em nenhum outro lugar do mundo é comum presenciar esse bangue-bangue com fuzis. Isso é assustador. Mesmo que a vítima consiga sobreviver, fica mutilada, perde a capacidade de trabalhar ou enfrenta sequelas permanentes que a impedem de retomar a rotina. Esse é um custo indireto, difícil de mensurar, mas extremamente significativo para a sociedade.

Foi o tiro de uma arma dessas que atingiu Caio Douglas Nascimento Wiechers, então com 18 anos. O jovem seguia para casa de carro com a mãe, Alexsandra Nascimento, que entrou por engano na Cidade Alta, no Complexo de Israel, na Zona Norte, em 2022.

— Lembro que foram muitos tiros, mais de dez. Quando cheguei ao fim da rua e foi que vi meu filho baleado na cabeça. Parecia um filme. Fique muito impactada porque o Caio sempre foi caseiro. Então, eu pensava: o Caio está com a mãe, e aconteceu isso — relembra.

Traumas que não se curam

Contrariando as estatísticas — médicos estimam que 90% das vítimas de fuzil morrem —, Caio sobreviveu e, pouco mais de um ano depois, passou por uma cirurgia para reconstrução do crânio. Hoje, utiliza uma cadeira de rodas motorizada e faz tratamento com fonoaudióloga. Mas as sequelas daquele dia permanecem gravadas na vida dos dois. Só recentemente, três anos após o tiro, Alexsandra conseguiu voltar ao trabalho. Ela conta que ainda sente medo de sair de casa.

— Só quem está vivendo o que eu estou vivendo, de ter parado a minha vida, a minha história, o futuro dele, vai entender. O Caio queria entrar para o Exército. Tudo acabou. Outras pessoas foram baleadas no mesmo lugar e nada mudou — desabafa.

Tratamento longo: Alexsandra Nascimento e o filho, Caio Douglas Wiechers — Foto: Domingos Peixoto
Tratamento longo: Alexsandra Nascimento e o filho, Caio Douglas Wiechers — Foto: Domingos Peixoto



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